Diante do cenário de aumento dos gastos públicos para o enfrentamento à pandemia de coronavírus, uma das possibilidades que já estão em articulação pelo governo federal e Congresso Nacional é uma alteração à Constituição, por meio de PEC, para reduzir em 25% os salários e a jornada de trabalho dos servidores públicos federais de todos os Poderes. O dinheiro seria direcionado para ações de combate à doença.
O Executivo já elaborou um texto da PEC ao qual o jornal O Globo teve acesso. Além disso, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tem afirmado continuadamente apoio a este tipo de medida.
"Até 31 de dezembro de 2024, autorizada a redução da jornada de trabalho dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional em até 25%, com adequação proporcional de remuneração", diz trecho da PEC do governo.
Outro trecho detalha quais servidores seriam afetados:
"Somente será aplicável aos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, aos membros de qualquer dos Poderes, aos detentores de mandato eletivo e aos demais agentes políticos com remuneração superior a três salários mínimos".
Ainda não há informações sobre quando a proposta seria enviada ao Congresso, mas ela certamente terá que enfrentar a resistência das categorias federais, que já estão reagindo, e também de algumas alas da oposição. Entidades como o Fórum Nacional das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), a Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (ADUnB), a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe) já criticam a medida.
A proposta é muito semelhante a uma parte da chamada PEC emergencial, que está em tramitação no Congresso, desde o final do ano passado. O texto também tem um dispositivo para permitir a redução da remuneração dos servidores e da carga horária, em até 25%, em caso de violação da regra de ouro.
De acordo com a nova PEC do governo, a redução dos salários já começaria imediatamente, após a aprovação, e permaneceria vigente até o fim de 2024. Ela só iria valer para os servidores que recebem mais de três salários mínimos, ou seja, o equivalente a R$ 3.135.
O corte nos salários alcançará os vencimentos, subsídios, gratificações e demais parcelas remuneratórias de caráter permanente. Membros do Poderes, como promotores, juízes, deputados e senadores também poderão ter o salário reduzido.
Também ficam proibidas até dezembro de 2022, a concessão de reajustes salariais; a criação de cargo que cause aumento de despesa, a contratação ou admissão de pessoal, e a realização de concurso público.
Os Estados e municípios não estariam incluídos na PEC, e teriam que fazer suas próprias normas para aplicar as mesmas medidas, assim como ocorreu na reforma da Previdência.
A PEC prevê somente, para os Estados, medidas que alteram os pagamentos de precatórios. Os governos estaduais e municipais estariam autorizados à suspensão do pagamento de precatórios até dezembro, e desobrigados a depositarem, até abril de 2021, parcelas mensais dos precatórios.
Maia voltou a tocar no tema na coletiva de imprensa desta quinta-feira (26). Ao ser questionado sobre a redução do salário de parlamentares, ele afirmou que a ação não deve ser um "gesto político".
A "PEC emergencial", enviada para o Congresso no final de 2019, ainda não foi deliberada. As sessões remotas da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) estão sendo feitas só para votação. Havia uma possibilidade da leitura do relatório do senador Oriovisto Guimarães (Podemos/PR) ser lido, na última semana, mas como o Congresso já estava funcionando sem acesso ao público, e muitas sessões e votações acabaram afetadas.
Uma questão jurídica recente que deve ser enfrentada pela PEC é que o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou contra a possibilidade de reduzir jornada e salário de servidores quando a despesa estourar o teto de 60% da receita, descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Este trecho da lei está suspenso desde 2002, por liminar.
O STF já formou maioria, em agosto de 2019, para declarar inconstitucional artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que prevê a redução da jornada e salários de servidores para que os órgãos se adéquem aos limites da lei. O argumento é que a Constituição prevê que uma lei não pode prejudicar o direito adquirido, e também que vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis.
Especialistas em contas públicas ainda divergem sobre efetivação e o impacto deste tipo de medida para pagar a alta conta deixada pela pandemia para o governo. Eles concordam, no entanto, que aprová-la terá um custo político e econômico muito alto.
O economista e secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, avalia ser necessário que o governo faça uma complexa costura para o projeto ir adiante.
"Estamos vendo até o presidente da Câmara defender a medida, algo que seria impensável a meses atrás. A situação é tão extrema, que talvez haja possibilidade de avançar. Outra opção, talvez mais rápida, seria a de priorizar a tramitação da PEC Emergencial, que já está mais avançada. Ela prevê que quando o governo tiver que se endividar para pagar despesa de custeio, ou seja, quebrar a Regra de Ouro, ele não poderia mais dar ajustes, e estaria autorizado a diminuir os salários", disse.
Castello Branco acrescenta que o governo precisará rever completamente suas outras propostas de reforma que estavam em elaboração, como a Administrativa, que era aguardada para este início de ano. Para ele, é razoável que se imponha alguma medida aos servidores públicos que tem altos salários.
"Na situação atual da pandemia, o servidor público é quem está mais protegido. Está com seus salarios em dia, não corre o risco de demissão e está até com despesas eventualmente menores, trabalhando em home office. Se compararmos essa situação com a daqueles que trabalham na informalidade, que são autônomos ou empreendedores, estão tendo muito pouco impacto", afirma.
O economista lembra que, ao mesmo tempo, Rodrigo Maia está discutindo o que vem chamando de "Orçamento de guerra", que poderia passar um pente fino nas despesas, para redirecionar recursos da saúde em detrimento de outra área. Isso já começou a ser feito em ações isoladas, como o adiamento do Censo, do IBGE, para transferir os gastos para a área de saúde.
Já o pós-doutor em Administração Pública e Governo e professor da Ufes Robson Zucolotto vê a PEC do governo com ressalvas. "Maia disse em um primeiro momento que levaria essa pauta adiante, mas teria ocorrido um recuo. Gera um desgaste politico muito grande, inclusive para quem quer se reeleger. Reduzir salários em 25% de forma obrigatória tem características de confisco, uma série de pontos que são inconstitucionais. Provavelmente é uma medida que seria judicializada", disse.
Ele defende que o governo pode lançar mão de outras medidas para as contas públicas.
"Entendo que todos tem que contribuir, mas seria mais justo se a gente houver uma discussão sobre um imposto provisório que incida sobre o salário ou a renda das pessoas, por exemplo, mas que seja para todo mundo. Há espaços fiscais muito grandes no Brasil, como a tributação sobre lucros e dividendos, tributação de grandes fortunas, de aeronaves e embarcações, que hoje não são feitas. A gente tem como cobrar recursos de quem realmente tem muito dinheiro. Se você tira dinheiro do servidor público, limita o poder de consumo de quem já recebe o seu salário, e isso acaba fazendo com que a economia tenha menos dinheiro", defende.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta