Ofícios trocados entre deputados e senadores com o Ministério do Desenvolvimento Regional, do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), indicam a existência de um orçamento secreto de R$ 3 bilhões utilizado no final do ano passado para beneficiar a base governista no Congresso Nacional. O esquema, que já ganhou da oposição o nome de "Bolsolão", foi revelado em uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.
Boa parte das emendas foi utilizada para a compra de tratores em valores até 259% acima do preço tabelado pelo próprio governo, em aquisições por outros órgãos. As indicações beneficiam 37 deputados e cinco senadores, entre eles o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o ex-líder do governo na Câmara Vitor Hugo (PSL-GO).
O líder de indicações foi Alcolumbre, ex-presidente do Senado, que apontou o destino de R$ 277 milhões. Nem todos os parlamentares beneficiados no "orçamento paralelo" foram identificados e, entre os citados até agora, não há nenhum eleito pelo Espírito Santo.
A estrutura dessas emendas foi montada no final do ano passado, durante a eleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Os recursos destinados às indicações dos aliados do presidente não obedecem, segundo o jornal, as leis orçamentárias, já que são os ministros – e não os parlamentares – que definem onde aplicar os recursos.
Além disso, os acordos para direcionar esse dinheiro extra não são públicos e nem equânimes entre os outros congressistas. Cada deputado do Congresso tem, tradicionalmente, independentemente de ser da base ou da oposição, R$ 8 milhões em emendas ao orçamento para indicar em benfeitorias a serem realizadas onde bem entender. Geralmente elas são destinadas ao reduto eleitoral de cada político.
Nesta segunda-feira (10), o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, pediu que a Corte apure os indícios de irregularidades cometidas por Bolsonaro ao criar o "orçamento paralelo".
O presidente se manifestou nesta terça-feira (11) sobre a reportagem, em conversa com apoiadores na saída do Palácio da Alvorada. "Todo dia [apanho]. Faço um churrasco aqui, apanho. Inventaram que eu tenho um orçamento secreto agora. Tenho um reservatório de leite condensado ali, 3 milhões de latas. Pode ver, isso é sinal que não têm o que falar. Como o Orçamento foi aprovado, discutido durante meses e agora apareceu R$ 3 bilhões? Só os canalhas de O Estado de S. Paulo para escreverem isso", disse.
De acordo com o Estadão, os congressistas aliados, após acordo sobre os valores com o governo, indicam o repasse por dois caminhos. Um deles é por um convênio entre o município que o parlamentar deseja beneficiar com sua cota e o Ministério do Desenvolvimento Regional. A compra, seja de um trator ou a contratação de uma obra, segue as exigências de licitação, realizada pelo município, com os recursos liberados pelo ministério.
O outro caminho é pelo direcionamento para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Paranaíba (Codevasf), que é uma estatal vinculada ao Ministério de Desenvolvimento Regional. Outros órgãos vinculados à pasta, como o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) e a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco), também operam as movimentações.
Nestes casos, os repasses são mais rápidos, já que a Codevasf, por ser estatal, tem maior liberdade para executar diretamente os serviços, sem passar pelos municípios. As contratações também podem ser feitas com menor restrição de licitação.
Boa parte dos R$ 3 bilhões do orçamento secreto foram destinados para a compra de máquinas pesadas, como tratores, retroescavadeiras e equipamentos agrícolas. Foram R$ 271,8 milhões utilizados com essa finalidade. Essas aquisições, contudo, ocorreram, na maior parte das vezes, em valores superiores ao que é tabelado pelo próprio governo federal.
Os ofícios aos quais a reportagem do Estadão se baseou mostram que são os parlamentares que indicam os preços e os modelos de tratores a serem adquiridos. Há casos em que até o CNPJ da empresa e o telefone de contato são repassados pelos aliados ao ministério.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, por exemplo, direcionou ao Dnocs a compra de 44 tratores para serem entregues ao Mato Grosso. Pela tabela, os preços seriam limitados a R$ 100 mil cada um. No total, os itens custarão R$ 1,6 milhão a mais do que o valor de referência.
Em resposta a um pedido de informação do Estadão, o Ministério do Desenvolvimento Regional reconheceu que os parlamentares definiram como e onde aplicar os R$ 3 bilhões da pasta, o que não é permitido pelas leis orçamentárias. "Os recursos oriundos de emenda de relator-geral foram executados conforme definição do Congresso Nacional", informou o ministério.
Parlamentares não podem definir quais projetos serão executados, atribuição que é exclusiva do governo, seguindo uma divulgação prévia dos critérios e estudos para definir o uso do recurso. Um artigo que permitiria o manejo dos recursos pelos congressistas chegou a ser pautado durante a aprovação do orçamento de 2020, mas foi vetado por Bolsonaro.
Sobre as compras acima do preço de tabela, a pasta informou que os valores fazem parte de um "material de apoio", mas "não se trata de um normativo". "Caso o valor do equipamento seja mais alto, será publicado um termo aditivo com aumento de contrapartida" do titular do convênio "para cobrir os custos necessários", justificou o ministério.
Entre os parlamentares que aparecem nos ofícios do orçamento paralelo, o Estadão citou os deputados federais Flávia Arruda (PL-DF), Vicentinho Junior (PL-TO), Cláudio Cajado (PP-BA), Lúcio Mosquini (MDB-RO), José Nelto (Podemos-GO), Vitor Hugo (PSL-GO), Domingos Neto (PSD-CE), Otaci Nascimento (Solidariedade-RR), Bosco Saraiva (Solidariedade-AM), Lucas Vergílio (Solidariedade-GO), Charles Fernandes (PSD-BA), Wellington Roberto (PL-PB), além do presidente da Câmara, Arthur Lira.
Entre os senadores, fazem parte, de acordo com o jornal, Eduardo Gomes (MDB-TO), Elmano Ferrer (PP-PI), Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), Rodrigo Cunha (PSDB-AL) e Davi Alcolumbre.
A deputada e atual ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL-DF), dirigiu-se à Codevasf para definir o destino de R$ 5 milhões. Questionada pelo Estadão, ela disse não se recordar dos valores. “Não me lembro. Codevasf?”, perguntou.
O deputado Vicentinho Junior (PL-TO) escreveu à Codevasf que havia sido “contemplado” com o valor de R$ 600 mil para compra de máquinas. “Dificilmente esse ofício foi redigido no meu gabinete, porque essa linguagem aí, tão coloquial, eu não uso”, disse.
O deputado Cláudio Cajado (Progressistas-BA) disse que tratou da indicação de R$ 12 milhões com a Secretaria de Governo, na época chefiada por Ramos, razão pela qual pediu em ofício à Codevasf “minha cota autorizada pela Segov”. Ele nega que os recursos sejam em troca de apoio a Bolsonaro.
O deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO) disse que apenas garantiu a verba. “Daí em diante é com a prefeitura e o governo”, disse.
A assessoria do deputado José Nelto (Podemos-GO) disse que o governo e as prefeituras são os responsáveis pela definição e execução dos valores.
O deputado Vitor Hugo (PSL-GO) disse que “não houve sugestão de preços para aquisição de nenhum dos itens” e responsabilizou as prefeituras.
O deputado Bosco Saraiva (Solidariedade-RR) disse que atendeu a um pedido do deputado Ottaci Nascimento (Solidariedade-AM). Por sua vez, Nascimento afirmou ter aceito um pedido do líder da legenda na Câmara, Lucas Vergílio (Solidariedade-GO).
O senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL) admitiu que “ditou” para o ministro Marinho onde R$ 7 milhões deveriam ser aplicados.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e o deputado Charles Fernandes não responderam aos questionamentos da reportagem do Estadão.
O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) afirmou que como presidente do Congresso tinha esse “papel de liderança” e atuava “para atendimento das demandas dos demais parlamentares, em procedimento rigorosamente dentro da legalidade”.
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