Em tramitação na Câmara de Vitória desde o ano passado, o projeto de lei Escola Sem Partido que visaimpedir que professores transmitam qualquer tipo de posicionamento político, ideológico ou religioso dentro das salas de aula já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa, mas precisa do aval de outras duas comissões para chegar ao Plenário.
À medida que ele avança, aumenta também o receio da classe educadora, que teme pela perda de sua liberdade para lecionar. No centro das discussões, o que está em xeque é o futuro do modelo de ensino da Capital.
Embora tenha sido proposto pelo vereador Davi Esmael (PSB), o PL 225/2017 é baseado em um programa desenvolvido e divulgado nacionalmente por seu idealizador, o advogado Miguel Nagib, com o apoio de pais e alunos que se dizem preocupados com o grau de "contaminação político-ideológica das escolas brasileiras", conforme descreve a página do projeto na internet.
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Além de prever que o poder público não interfira no processo de amadurecimento sexual dos alunos e nem permita dogmatismos ou proselitismos na abordagem das questões de gênero, o projeto que tramita em Vitória proíbe que o professor se aproveite "da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais políticas e partidárias".
CONDUTAS
Em seu terceiro e último artigo, são propostas seis condutas a serem seguidas pelos docentes. A ideia é que elas sejam fixadas nas portas das salas de aula e das salas dos professores, caso a lei seja aprovada.
As normas vão além da proibição de que professores façam propaganda político-partidária, impedindo-os também de incitar os alunos a participarem de manifestações, atos públicos ou passeatas. Do mesmo modo, é vedado favorecer, prejudicar ou constranger alunos "em razão de convicções políticas, ideológicas, ideológicas, morais ou religiosas".
Em outro ponto, é dado aos pais o direito de que "seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções". Já aos professores cabe a função de garantir que os direitos dos estudantes não sejam feridos por outras pessoas.
Davi Esmael defende que tais normas já existem. Nesse sentido, o objetivo da proposta é fazer com que crianças e adolescentes conheçam seus direitos. "Faço parte de um movimento que tem constatado excessos por parte de alguns professores e o aproveitamento de uma audiência cativa dos alunos. A proposta é que haja um equilíbrio no dever de ensinar e um respeito aos valores e princípios dos pais", argumenta.
O vereador acrescenta que também observa excessos na formação dos professores. Como exemplo, cita uma palestra que teria sido oferecida aos professores de Vitória, intitulada "Os impactos do golpe na educação e na população LGBT"."Quando vejo o processo de formação, tenho certeza que se não houver nada para inibir, isso se repetirá em sala de aula".
O Escola Sem Partido já recebeu parecer positivo da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Vitória, mas antes de ser votado na Casa, ele deverá passar pelas comissões de Educação e de Direitos Humanos.
MÉRITO
Porém, no que depender do vereador Roberto Martins (PTB), que é presidente de ambas, o projeto não irá à frente. Ao avaliar o mérito da proposta, o parlamentar, que é professor, afirma que ela é imprecisa e inconsistente.
"O projeto fala de neutralidade política, mas o pensamento moderno não admite esse termo. Toda pessoa carrega suas ideologias e o que deve haver é imparcialidade, não neutralidade", criticou. E complementou: "A escola é lugar de pluralidade, onde se aprende a lidar com as diferenças. Um outro ponto fala que professores não podem incitar alunos a participar de qualquer tipo de manifestação. Mas por que não? Um dos privilégios dos alunos é poderem colocar sua cidadania em prática, o que não pode haver são dogmatismos".
PROPOSTA NÃO AGRADA EDUCADORES
Entre os professores, a insatisfação gerada pela proposição do Escola Sem Partido fez com que sindicatos e conselhos representantes da categoria lançassem notas de repúdio contra a medida. Professora do Centro de Educação da Ufes, Cleonara Schwartz define a proposta como "absurda" e "um retrocesso".
"Não é possível querer tornar a escola um espaço de neutralidade, proibindo manifestações pessoais. Não tratar questões como a diversidade religiosa, sexual e étnico racial é tratar a escola como um espaço homogêneo, o que ela não é. A escola é um espaço de formação e não é possível se constituir um sujeito no interior das relações educacionais proibindo as discussões", afirmou.
Sobre os excessos apontados pelo vereador Davi Esmael (PSB), ela rebate: "Não acredito que haja exageros, pois professores passam por rigorosos processos de avaliação e há um corpo pedagógico que o acompanha. Há exagero apenas por parte de que quem propõe essa medida, que é um atentado ao Estado democrático de direito".
PLURALIDADE
Já o conselheiro do Conselho Estadual de Educação e membro do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo Gildo Lyone Antunes de Oliveira acrescenta: "Entendemos que a intenção desse tipo de projeto é frear o direito da comunidade de debater sobre a pluralidade do conhecimento. Os alunos precisam aprender a conviver com as múltiplas manifestações de cidadania".
Gildo ainda critica a falta de iniciativas parlamentares para debater problemas cotidianos das instituições, como a falta de estrutura.
A presidente do Conselho Municipal de Educação de Vitória, Charla Campos, garante que a entidade está pronta para fazer resistência ao projeto. "Julgar se há exageros não é prerrogativa do Poder Legislativo e sim da Secretaria de Educação. A Educação de Vitória se constitui a partir de diretrizes curriculares nacionais. Não aceitamos a intervenção de poderes que não conhecem a pauta educacional".
CONSTITUCIONALIDADE É QUESTIONADA
Um dos principais debates gerados em torno do projeto Escola Sem Partido diz respeito à sua constitucionalidade. Entidades representantes dos docentes, assim como juristas que se opõem ao movimento defendem que a proposta fere os princípios da Constituição de 1988.
Apesar das discussões em âmbito nacional, na Câmara de Vitória, o vereador Leonil Dias (PPS), que preside a Comissão de Constituição de Justiça, declarou que ele e os demais integrantes do grupo não observaram nenhuma inconstitucionalidade.
"No entanto, o mérito dele será debatido em plenário, após tramitar por outras comissões", pontuou.
Mas caso semelhante acabou no Supremo Tribunal Federal (STF). Em março de 2017, o ministro Luís Roberto Barroso decidiu pela inconstitucionalidadedaLei 7.800/2016, de Alagoas, baseada no projeto Escola sem Partido.
Elafoi questionada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.537, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee).
"É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia", argumentou Barroso.
PARECER
Já no início de maio deste ano, a Advocacia Geral da União enviou ao ministro seu parecer sobre o mesmo caso, reforçando a inconstitucionalidade da Lei.O advogado Antonio Carlos Pimentel também analisa que a proposta ultrapassa os limites constitucionais ao querer assumir um papel que deve ser exercido pela União. "É expressa na Constituição a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (artigo 22, XXIV)", destaca.
Para Pimentel, a proposta, além de impor limitações teóricas ao ensino, afeta a liberdade de expressão.
"O projeto pretende custodiar e restringir o exercício do magistério a pretexto de afastar ideologias contrárias à tradicional cultura histórica do país. Mais do que ninguém, os professores devem ter a liberdade de expressão de opinião, somente respondendo por eventuais excessos a que derem causa", ressaltou Pimentel.
ANÁLISE: SE EMPLACAR, ACABOU A CIÊNCIA
Renato Janine Ribeiro ex-ministro da Educação e professor
"Esse é um projeto contra a educação. Educar vem do latim e significa sair de dentro para fora, abrindo-se para um mundo mais amplo. Esse é o processo de socialização. As pessoas precisam disso pra se tornarem adultas. Mas este projeto quer que as pessoas fiquem sempre sobre a tutela dos pais, tanto que um de seus pontos proíbe a escola de ensinar conteúdos contrários à religião das famílias. Sendo assim, uma pessoa que acredita na criação do mundo por Deus não poderia estudar Física. O que é muito preocupante é que ele vai contra a cultura moderna. Se ele emplacar, acabou a ciência. Os idealizadores dizem que são contra doutrinação de esquerda, mas buscam fazer a doutrinação de direita. Não são só cursos de Sociologia, História, Português que seriam alvejados, mas também as ciências, cujo desenvolvimento é essencial para o novo mundo em que vivemos. É um projeto do atraso, congelado em um passado que já acabou".
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