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Fantasmas na Assembleia do ES: sem punição, mesmo após confissão

Fantasmas na Assembleia do ES: sem punição, mesmo após confissão

Assessores externos não são obrigados a bater ponto nem a apresentar comprovação de atividades, o que abre brecha para  funcionários fantasmas. E mesmo casos comprovados não resultaram em processo

Publicado em 23 de fevereiro de 2021 às 20:44- Atualizado há 4 anos

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Data: 02/01/2020 - ES - Vitória - Sede da Assembléia Legislativa do ES - Editoria: Política - GZ
Assessores de deputados estaduais não são obrigados a comparecer à sede da Assembléia Legislativa do ES. (Carlos Alberto Silva)
Natalia Devens
Repórter de Política / [email protected]

O desfecho de um dos poucos casos que resultou em abertura de investigação pelo Ministério Público Estadual (MPES) sobre suspeitas de servidores fantasmas na Assembleia Legislativa, em 2019, acabou não gerando nem mesmo um processo por improbidade administrativa, o que acende o alerta sobre a falta de punições mais severas para esse tipo de caso.

Como mostrou a coluna Vitor Vogas, após mais de um ano da abertura de inquérito civil para apurar se um então servidor comissionado lotado como "assessor externo" no gabinete do deputado estadual José Esmeraldo (MDB) exercia algum tipo de atividade relacionada ao mandato, foi firmado um acordo extrajudicial entre o agora ex-funcionário e o MPES, uma espécie de solução consensual para evitar o ajuizamento de ações judiciais.

Cada um dos 30 deputados da Assembleia do Espírito Santo pode ter até 19 assessores e, se quiser, pode definir que todos esses 19 são assessores externos, que não obrigatoriamente trabalham na sede do Legislativo e sobre os quais não há mais nenhum controle de frequência ou quanto às atividades desempenhadas.

A falta de transparência no controle do trabalho dos assessores externos representa uma brecha para a existência de funcionários fantasmas, facilitando desvios de conduta, já que, dada a falta de registros, os trabalhos desenvolvidos – ou a falta deles – são algo difícil de apurar ou comprovar.

A ausência de fiscalização sobre os assessores externos se tornou ainda mais contundente em 2019, após o MPES ter cobrado a Assembleia que publicasse relatórios semanais de atividades que deveriam ser feitas por esses assessores. Até então, os relatórios, quando elaborados, não precisavam ser divulgados.

A Gazeta pediu acesso aos relatórios por meio da Lei de Acesso à Informação e verificou que muitos eram incompletos ou inexistentes. Também foi demonstrado que servidores de deputados viajaram para fora do Estado enquanto deveriam estar no assessoramento parlamentar e que receberam para ir a igrejas, a festas ou para fazer campanha eleitoral.

Após idas e vindas durante quatro meses, projetos apresentados e engavetados e episódios de mal-estar entre os Poderes, por fim os deputados extinguiram a necessidade dos relatórios de atividade. 

O INQUÉRITO ARQUIVADO

O servidor que realizou um acordo de não persecução cível com o MPES, no último mês de dezembro, José Carlos Mação, servidor de José Esmeraldo, era um dos investigados na época em que a Assembleia foi cobrada pela publicação dos relatórios dos assessores. Comprovadamente, ele tinha passado 40 dias em Rondônia, na soma de duas viagens realizadas entre dezembro de 2018 e março de 2019, sem que estivesse de férias ou de licença das funções e sem que ninguém soubesse ou quisesse explicar o motivo da ausência.

No inquérito, descobriu-se que o assessor de Esmeraldo ausentou-se do serviço por um total de 121 dias. Após acordo com o MPES, foi estabelecido que ele fica livre de responder perante a Justiça por seus atos, vai devolver à Assembleia a quantia que recebeu no período e pagar uma multa pecuniária. O dano aos cofres públicos foi de R$ 13,8 mil e a multa civil ficou no valor de R$ 15,8 mil, a serem pagos ao longo de dois anos e meio. O deputado José Esmeraldo não chegou a responder pelo caso.

Esse não foi o primeiro episódio na Assembleia que não gerou condenação por improbidade. Em abril de 2019, houve a extinção de uma ação movida pelo MPES contra o deputado Marcelo Santos (Podemos), na qual ele era acusado de manter funcionários fantasmas lotados em seu gabinete. O inquérito, de 2015, também continha elementos como depoimentos dos próprios assessores que equivaliam a confissões de que eram pagos para não fazer nada. 

Naquele caso, o MPES desistiu da ação de improbidade movida pelo próprio órgão. No mesmo processo, dois promotores de Justiça manifestaram entendimento contrário: onde uma viu fartura de provas para oferecer a ação à Justiça, o outro não detectou elementos probatórios suficientes para manter o processo. Com isso, houve a extinção do processo.

CONTRAMÃO

Para a ONG Transparência Capixaba, os fatos demonstraram que, muitas vezes, o poder público atua na contramão do controle social. O secretário-geral da entidade, Rodrigo Rossoni, aponta que a Assembleia retrocedeu ao eliminar o limite de servidores com atuação externa e o relatório de atividades.

"É óbvio que a atividade parlamentar não se dá apenas no gabinete, mas sem esse controle, criamos brechas para esse tipo de desvio de conduta. Mau exemplo da Casa de leis, falta de transparência e pouco caso com o combate à corrupção", afirma.

Quanto à decisão do MPES de adotar uma solução consensual em relação ao caso do assessor de José Esmeraldo, em vez de levar o caso à Justiça, ele avalia que a medida, apesar de não ser a ideal, pois causa a sensação de impunidade, inclusive pelo deputado contratante ter saído ileso, o Brasil tem um sistema judicial com inúmeros recursos que inviabilizariam, não apenas a punição, mas também a devolução aos cofres públicos do que foi desviado.

"Podemos perseguir o ideal e, para isso, os instrumentos de controle devem ser aperfeiçoados: transparência, processos eletrônicos, estímulo à participação ativa da população, liberdade de imprensa, entre outras. Mas também temos que reconhecer a possibilidade de o MPES em atuar com o que tem em mãos no momento", avalia.

Professor de Ética no curso de Direito da Ufes, Júlio Pompeu destaca que há duas formas de compreensão sobre o serviço público, que são antagônicas, o que não é benéfico. "Em uma delas, compreende-se que quem paga imposto deve ter o direito de saber se o dinheiro é bem aplicado, qual é a necessidade de todas as pessoas que estão ali trabalhando e o que eles fazem. No entanto, em outra vertente, esses cargos são tratados como algo que pertence àquele que nomeia", analisa. 

"Cargo de confiança significa que o povo está confiando neles para selecionar aqueles aptos a atuar. E tem que ter uma forma de mensurar o trabalho deles. Muitas vezes, falta a cultura da seriedade no controle desse trabalho e no desenvolvimento de próprio trabalho", pontua. Ele lembra que, em geral, os próprios deputados podem não ter interesse em divulgar o trabalho de seus assessores. 

"Não é 100% do trabalho dos assessores que é em prol do mandato, também há uma parte pela reeleição, essas duas coisas se misturam. Por isso, não querem revelar todas as agendas. Entre o modo tradicional de controlar, 'batendo ponto', e o modo 'nenhum', ficam com a segunda opção", diz.

O doutor em Direito Constitucional e professor de Ética na UnB Alexandre Bernardino Costa também frisa que o instrumento ideal para coibir irregularidades na atuação dos servidores seria a adoção de relatórios de atividades, divulgados ao público.

"Há atividades de servidores públicos que não se desenvolvem por horário, e sim por tarefas, o que é o caso da atividade parlamentar. Há muitos servidores que trabalham em fins de semana e horários variados. Mas o que está faltando por parte dos órgãos é o controle público e a transparência dessas atividades, com prestação de contas. Os cargos são políticos, mas ainda têm a característica de serviço público, pois eles servem a um mandato, que existe a serviço do povo", ressalta.

Para ele, havendo transparência, poderia haver maior controle por parte dos próprios pares, do Ministério Público e da sociedade. 

ASSEMBLEIA DIZ QUE RESPONSABILIDADE É DE DEPUTADOS

Questionada sobre a efetividade das punições nos casos de suspeitas de servidores fantasmas e a falta de controle das atividades dos assessores externos, a Assembleia Legislativa destacou, por nota, que a gestão do servidor de gabinete que atua com atividade de representação parlamentar externa é de responsabilidade de cada gabinete.

"A previsão de frequência e controle de atividades desenvolvidas estão no parágrafo 3º do artigo 8º da Resolução 2.890/2010. Todas as denúncias que, por ventura, chegam aos canais de controle da Assembleia são apuradas e, constatada qualquer irregularidade, é aberto um processo administrativo para adoção das medidas cabíveis."

Segundo o dispositivo citado, "os servidores localizados nos respectivos gabinetes parlamentares serão submetidos a registro próprio de frequência e controle de atividades desenvolvidas, sob a responsabilidade do servidor designado pelo respectivo deputado estadual".

O Ministério Público Estadual (MPES) foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem.

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