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'Fomos quase todos presos, encapuzados e torturados'

"Fomos quase todos presos, encapuzados e torturados"

O fotógrafo capixaba tinha 20 anos e estudava no Rio de Janeiro quando foi vítima da face mais obscura do período ditatorial. Veja a entrevista.

Publicado em 29 de março de 2019 às 23:53

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Aos 20 anos, o fotógrafo capixaba Humberto Capai ainda era estudante quando foi sequestrado e torturado por militares no Rio de Janeiro. O ano era 1972, período em que o Ato Institucional Número 5 – decreto conhecido por institucionalizar a tortura a partir de 1968 – vigorava. Mas este não foi seu primeiro e nem único choque frente à ditadura. Mais cedo, em 1968, ele havia acabado de chegar ao Rio quando presenciou a morte do estudante secundarista Edson Luís, que foi assassinado por policiais militares que invadiram o restaurante Calabouço, no centro da cidade, durante uma manifestação estudantil. Edson tinha 18 anos e era um dos 300 estudantes que jantavam no local, assim como Humberto. Seu funeral, acompanhado por milhares de pessoas, parou o Rio de Janeiro. 

Vigiado mesmo depois de ter sido libertado da prisão, Humberto Capai decidiu estudar no Chile por um tempo, onde também acabou presenciando o golpe militar que derrubou o regime democrático constitucional do país e de seu presidente, Salvador Allende, em 1973. Decidiu voltar ao Brasil motivado por um desejo: o de restabelecer a democracia em seu país. Hoje com 67 anos, Humberto revive estas memórias para exaltar justamente a importância do sistema democrático. Veja:

Você conheceu o estudante Edson Luís, que foi morto por militares em 1968? Vivenciou a morte dele de perto?

Não conhecia nem o Edson nem nenhum outro comensal do Calabouço, que garantia o almoço e a janta para estudantes pobres pelo preço de um cachorro quente do Bob’s. Estava no Rio há um mês. Era preparada uma reivindicação pelo término das obras, melhores condições de higiene e de alimentação. Estávamos todos próximos uns dos outros.

O Edson levou um tiro no peito de um PM. Outro estudante foi baleado e faleceu no hospital. A truculência e a intolerância ficaram escancaradas ao combater ideias e reivindicações com balas verdadeiras. Coisas que só acontecem em Ditaduras.

A comoção e a indignação tomaram conta do Rio. Foram 50 mil pessoas no enterro, uma multidão na missa de sétimo dia e as manifestações se ampliaram por todo ano de 68. A repressão aumentou mas não intimidou a população. Sob esse pretexto, em 13/12/1968, foi decretado o famigerado AI-5. A ditadura amplia mais a repressão e milhares vão para o exílio e para a clandestinidade por não mais poderem exercer suas profissões nem os poucos direitos civis que tinham. Foi a maior “evasão de cérebros” da História do Brasil.

Aos 20 anos você foi sequestrado e torturado. Pode contar como isso aconteceu? Como conseguiu se libertar?

Fazia movimento estudantil na universidade e há poucos meses participava do Movimento de Universidade Crítica, inspirado no Maio de 68 da França e que atuava clandestinamente. As atividades nos Centros e Diretórios Acadêmicos eram vigiadas intensa e ostensivamente. Hoje seria um grupo de estudos que discutia e propunha atividades para a universidade e para o país. Fomos quase todos presos, encapuzados e torturados. E há quem diga que não tivemos uma Ditadura.

As torturas aconteceram no quartel da Polícia do Exército. Ninguém até então sabia de nosso paradeiro. De muitos presos políticos só se soube após terem sido mortos. Depois estive em duas outras instalações militares e fui liberado por ser considerado de baixa periculosidade. Segundo eles, um “pé de chinelo”, o que não me privou de choques elétricos e muita pancadaria. Alguns excessos, como diz o vice-presidente. Por algum tempo tive que me apresentar no II Exército. Lá, meus pais sofreram ameaças e humilhações em uma vez em que me acompanharam.

“Solto”, continuei vigiado e seguido. O apartamento em que morava foi invadido na minha ausência. Só faltou um carimbo escrito 'estamos por aqui'. Daí, resolvi estudar no Chile, que respirava alegria numa ampla democracia participativa. Depois de alguns meses resolvi voltar. Queria lutar para que meu querido Brasil pudesse viver em uma democracia. Em 11 de setembro daquele mesmo ano, vi incrédulo o maravilhoso povo chileno ser barbaramente massacrado por militares e civis que seguiam as ordens dos mesmos mandatários dos ditadores daqui. Se minha afirmação pode parecer exagerada, sugiro o documentário “ O Dia que Durou 21 Anos”, baseado em documentos do governo americano.

Quais as marcas ou memórias daquele tempo que ainda permanecem mais fortes para você?

A convicção que a Democracia é essencial para a melhoria, em todos os aspectos, da vida no planeta. Que a violência física e/ou psicológica só remete ao atraso e à destruição das conquistas da humanidade. Que a amorosidade é o fermento que devemos cultivar em todas as nossas relações como antídoto contra o fascismo e todas as tendências totalitárias. Que a solidariedade nos torna fortes para uma vida mais feliz.

Que a "A Luta Continua " e "Não passarão" ( o fascismos e seus derivados) são muito mais que palavras de ordem. São perspectivas para uma vida solidária, para uma democracia com justiça social e para uma sociedade mais feliz e capaz de gerir seus próprios destinos.

Vemos hoje o presidente da República autorizando a comemoração do Golpe de 64. O que acha disso?

Uma tragédia anunciada. Ele nunca escondeu seu apreço por ditaduras. Não se dá conta de que ele hoje é presidente do Brasil e que deve falar pela nação e não por suas convicções ideológicas. Assim deve fazer um verdadeiro estadista. E a cada fala, gera mais animosidade no país e no exterior. Elogia, em Itaipú, Alfredo Stroessner, ditador paraguaio por décadas, pedófilo e corrupto execrado pelos paraguaios. No Chile, exalta Pinochet, também execrado pela maioria dos chilenos. Até o direitista presidente chileno se manifestou contrário à sua declaração. O que o Brasil ganha com isto? Em que essas declarações contribuem para a relação do nosso país com os demais?

Em que esta ilegal “comemoração” (que fere a Constituição) contribuirá para apaziguar e trazer esperanças, renda e emprego para o povo brasileiro? Concluo dizendo que tortura não se comemora, que ditadura se repudia, e, aumentando o volume, ditadura nunca mais.

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