O governo do Espírito Santo cancelou mais de R$ 1,1 milhão em contratos emergenciais firmados pelo hospital Dório Silva, na Serra, durante a pandemia do novo coronavírus. Os convênios passam por inspeção na Secretaria de Estado de Controle e Transparência (Secont) e pelo menos um deles é investigado pelo Ministério Público Federal.
As compras sem licitação feitas pela unidade também estão na mira do Ministério Público do Espírito Santo (MPES). De acordo com informações disponíveis no site, desde meados de abril corre um processo que apura "possíveis ilegalidades/fraudes em contratações por dispensa à licitação no Hospital Estadual Dório Silva". O órgão confirma que há apuração em curso, mas não diz se os contratos citados na reportagem integram o processo.
"O Ministério Público do Estado do Espírito Santo informa que o procedimento está em fase inicial de investigação. Caso constatadas irregularidades, serão tomadas medidas previstas em lei", diz a nota.
As contratações canceladas pelo governo foram assinadas no período em que Katiana Erler ocupava o cargo de diretora-geral do hospital Dório Silva, uma das referências no cuidado de pacientes com Covid-19.
Tanto Katiana quanto a então diretora administrativa do hospital, Caroline Oliveira Castro, tiveram a exoneração a pedido publicada no Diário Oficial do Estado dias depois da publicação do cancelamento de um dos contratos.
Fontes ouvidas pela reportagem afirmam que os pedidos de demissão estão relacionados com o cancelamento dos contratos. Contudo, não há acusações formais de irregularidade contra nenhuma das ex-diretoras. Katiana nega que tenha havido desvios nas contratações e afirma que deixou o cargo para cuidar da saúde. Caroline não atendeu às ligações da reportagem.
A maior entre as contratações rescindidas, que soma R$ 749.416,10, foi feita com a empresa Talita Gonçalves Pauli (Projeto Brasil). O objetivo era contratar reparos elétricos, de marcenaria, jardinagem e outros serviços relacionados à manutenção do edifício onde funciona o hospital Dório Silva.
No Diário Oficial, o governo afirma que o cancelamento ocorreu porque os serviços não foram aprovados pela Gerência de Arquitetura e Engenharia da Secretaria de Saúde.
Na Receita Federal está listado que a principal atividade da empresa de Talita, que tem sede em Vila Velha, é "treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial".
Nessa área, ela tem atualmente contrato com o governo federal de mais de R$ 500 mil para fornecer ferramentas de gestão e dar cursos profissionalizantes para militares da aeronáutica. Também há registros de atividades educacionais prestadas às prefeituras de Serra, Santa Teresa e Aracruz em anos anteriores.
Porém, uma pesquisa no diário oficial mostra que nos municípios do Estado a empresa já venceu licitações para fornecer baterias de carro, banda de carnaval e até polpa de frutas.
Não há registro de que a Projeto Brasil tenha feito serviços de reparos em edifícios, como aquele contratado pelo Dório Silva.
Entre as mais de 40 atividades secundárias que a empresa de Talita registrou justo à Receita há ainda serviços de orfanato, fotocópias, promoções de vendas, guarda-móveis e locação de automóveis sem condutor.
O cancelamento do contrato com a empresa de Talita ocorreu no dia 8 de maio, uma sexta-feira. Na segunda-feira seguinte (11 de maio), o secretário de Estado da Saúde, Nésio Fernandes, assinou a exoneração a pedido Katiana e Caroline.
O segundo contrato cancelado, de R$ 432 mil, foi feito com a empresa Nathalia Toscano Luppi de Souza. Trata-se da compra de 117 mil kits de lanche, com biscoito, suco, sobremesa e fruta por R$ 3,70 cada um.
Na publicação do cancelamento do contrato no Diário Oficial, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) informa apenas que a empresa contratada "não atende aos requisitos de habilitação". Nathalia foi procurada pela reportagem, mas não quis se manifestar sobre o caso.
Uma pesquisa no banco de dados da Receita Federal mostra que a empresa de Nathalia tem como sede um apartamento no 13º andar de um condomínio residencial de luxo na Praia do Canto, em Vitória. Não há registro da empresa, fundada em janeiro deste ano, em outros contratos com o governo do Estado.
A reportagem apurou que esse contrato está sob investigação no Ministério Público Federal, sob sigilo.
De acordo com a Sesa, a direção da unidade realizou busca de preço e fez um mapa comparativo para a escolha da prestadora. Posteriormente, o motivo da rescisão contratual foi a falta de capacidade técnica da empresa. Por conta disso, o contrato foi cancelado e será submetido a inspeção. "Parte do serviço foi executado e a empresa recebeu o valor proporcional".
No sistema de acompanhamento de processo do governo do Estado consta que ambos documentos passam por auditoria na Secretaria de Controle e Transparência (Secont) desde o dia 14 de maio.
Dois outros contratos, também firmados pelo hospital Dório Silva durante o período da pandemia de coronavírus, foram enviados no mesmo dia e hora ao gabinete do titular da Secont.
Um deles prevê o aluguel de 26 contêineres e foi feito com dispensa de licitação junto a uma empresa com sede no Centro de Vitória. Contudo, quem representa a empresa na transação e assina o contrato é Talita Gonçalves Pauli.
O contrato, de R$ 387.589,50, foi firmado no dia 12 de março, quatro dias antes de o governador Renato Casagrande (PSB) publicar o decreto de situação de emergência em saúde pública por conta da pandemia de coronavírus.
Em 23 de março essa empresa foi contratada novamente, desta vez para fazer mobilização e catalogação de insumos hospitalares, por R$ 123 mil. Esse contrato não está listado no site que o governo do Estado disponibilizou para reunir as compras emergenciais.
No registro da Receita Federal, consta que ela tem como atividade principal o aluguel de máquinas e equipamentos comerciais e industriais. Contudo, a empresa registra 15 atividades secundárias que vão desde curso de idiomas à venda de jornais e revistas. Ambos contratos estão vigentes.
Em nota, a Secont confirmou que todos os contratos citados nesta reportagem encontram-se em inspeção, que deverá ser finalizada até a primeira quinzena de junho. Segundo a pasta, cada processo analisado vai gerar um relatório, que será encaminhado ao órgão responsável e à Procuradoria Geral do Estado (PGE).
Ainda segundo a Secont, todos os processos emergenciais serão inspecionados para "garantir que o processo siga as melhores práticas em compras públicas, sem impactar a celeridade necessária nas aquisições para o combate à Covid-19."
De acordo com um especialista em Direito Administrativo ouvido pela reportagem, caso seja comprovada a irregularidade em algum contrato, o responsável pela contratação pode ser punido administrativamente, com demissão. Ainda que a pessoa não faça mais parte do quadro de funcionários do governo, ela poderá responder na esfera cível, ressarcindo os cofres públicos, e criminal, caso seja comprovada a intenção da prática ilegal. Pode ainda haver punição política, com base na Lei da Ficha Limpa. Nesse caso, o condenado ficaria inelegível para cargo público por algum tempo.
A ex-diretora-geral do Hospital Dório Silva Katiana Erler nega que a sua demissão tenha vinculação com contratos que estão sendo investigados pela área de controle do governo estadual. Afirma que a motivação para deixar o cargo foi problema de saúde.
Katiana relata que em 2015 passou por um longo período de internação após um acidente automobilístico, que envolveu uma cirurgia cardíaca para a troca da válvula mitral. "Estou no grupo de risco. Tenho laudos que comprovam que não deveria estar no hospital neste momento de pandemia. Minha família também cobrava muito a minha saída", disse.
Garante também que a sua saída não tem relação com a demissão da diretora-administrativa, Caroline Castro. Ambas, segundo publicado no Diário Oficial do Estado, foram exoneradas "a pedido" no último dia 11 de maio.
Katiana considera normais as avaliações que estão sendo realizadas pela Secont. "É um órgão de controle, faz parte da rotina. São contratações emergenciais, passam por estas avaliações e não foram só os citados que foram cancelados, tivemos ainda a suspensão de contratos referentes à aquisição de máscaras, insumos, dentre outros. Um período muito desgastante".
Ela administrou o Dório Silva por um ano e um mês. A unidade enfrentava, segundo ela, grandes desafios operacionais. "É um hospital que não tinha condições arquitetônicas para muitos serviços, tanto que tem recebido muitos investimentos do governo", conta.
Com a pandemia do novo coronavírus, foi preciso pôr em prática "medidas contundentes em todas as áreas, essencialmente as destinadas a receber pacientes da Covid-19", conta ao se referir a manutenções feitas nos leitos com a instalação, por exemplo, de barreiras de isolamento tanto para funcionários quanto para pacientes.
No momento crítico da pandemia as UTIs não tinham estrutura adequada para os doentes e foi preciso fazer vários ajustes emergenciais e não poderia ter processos longos de contratação, explica, assinalando que foi preciso agir com celeridade. "Tinha a burocracia da papelada e a prioridade da vida. Mas se houve algo que a burocracia deixou passar, iremos rever e estou à disposição das autoridades", acrescentou.
Em relação aos contratos, explica que o referente aos lanches foi feito para evitar que os funcionários transitassem entre os setores, o que evitaria a contaminação. "Uma empresa já fornecia alimentação para os servidores, mas o contrato não contemplava lanches e abrimos um novo processo. A empresa contratada chegou a fornecer lanches por 30 dias, mas o contrato foi suspenso e não sei informar o motivo. Foi um processo que demandou mais de 15 e-mails para a empresa, com mais de oito repostas para a cotação", relata.
Ela disse ainda que desconhecia o fato desta empresa que fornecia lanches funcionar em um apartamento na Praia do Canto, em Vitória.
O contrato com a empresa Talita Gonçalves Pauli, para manutenção predial, foi suspenso por haver falta de documentação. "Foi constatado pela comissão de licitação, que decidiu por cancelar", explicou.
Em relação ao contrato de aluguel de 26 contêineres, diz que boa parte dos equipamentos já haviam sido instalados no hospital. "Precisamos realocar material de insumos que estavam armazenados para abrir espaço para leitos. Não sei quantos foram instalados porque havia um problema de espaço no local", relatou.
A ex-diretora administrativa Caroline Oliveira Castro não atendeu os contatos da reportagem.
A empresa Talita Gonçalves Pauli, que fechou um contrato para manutenção do prédio do Dório Silva por R$ 749,4 mil, posteriormente cancelado, afirmou que foi informada na publicação de cancelamento, que teve como justificativa a não aprovação da gerência de engenharia da Sesa. "Importante destacar que competimos com inúmeras outras empresas e ganhamos com o menor preço", disse.
Ela afirma não ter informação se o cancelamento do contrato tem alguma relação com os pedidos de demissão das diretoras. Sobre ter sido a responsável pela assinatura do contrato com a empresa que alugou contêineres, Talita declarou que as empresas não competiram entre si.
"Neste ato, dentro das atribuições legais, fui representante legal da empresa, contudo não faço e nunca fiz parte do quadro societário. As empresas têm CNAEs, isto é, autorizações legais para funcionar, diferentes, atuam em segmentos diferentes".
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