O papel dos atores políticos no Brasil estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e, portanto, consolidado há mais de 30 anos no país, veio ao centro do debate político nas últimas semanas, por meio da abordagem dada ao artigo 142, que define as atribuições das Forças Armadas. Invocado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na reunião ministerial divulgada por vídeo, e pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, o tema figurou inclusive como um dos mais citados por redes bolsonaristas no Twitter.
O dispositivo passou a ser mencionado como se as Forças Armadas pudessem ser acionadas pelo presidente para decretar uma intervenção militar no país e fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. A norma, que inicialmente visa a impedir intervenção, passou a ser usada como justificativa de intervenção nos outros Poderes, interpretação considerada equivocada, de acordo com juristas e especialistas no estudo sobre a Constituição.
Uma análise do advogado constitucionalista Ives Gandra Martins, no entanto, destacou que, em casos extremos, em que há um choque entre Poderes, os militares exerceriam um "poder moderador" e interviriam em outra instituição. O posicionamento dele foi compartilhado por Bolsonaro em suas redes sociais. Esse entendimento, no entanto, está longe de ser consenso, é o oposto do que a expressiva maioria dos constitucionalistas aponta.
O artigo 142 restringe-se às diretrizes sobre o funcionamento das Forças Armadas, prevendo:
Segundo juristas, o debate gerado para colocar as Forças Armadas como garantidoras dos Poderes constitucionais não pode ser distorcido.
Na reunião ministerial de 22 de abril, cujo vídeo foi divulgado, Bolsonaro afirmou: "Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil", disse o presidente.
Outra recente manifestação desta postura no governo foi o alerta ameaçador do general Augusto Heleno a propósito de eventual apreensão do celular do presidente. A apreensão, se levada a efeito, seria uma tentativa de "comprometer a harmonia entre os poderes", com "consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional", declarou o general.
Em artigo publicado pelo historiador José Murilo de Carvalho, ele detalha que em quase todas as sete Constituições que o Brasil teve (exceto em duas), as Forças Armadas tiveram papel político e policial. A inclusão da expressão "garantia da lei e da ordem" foi, inclusive, intensamente debatida na Assembleia Constituinte, que elaborou a Constituição.
"Segundo os críticos, ela podia dar margem a golpismo. Este dispositivo, no entanto, estava presente, com pequenas nuanças de redação, desde a Constituição de 1891. Ele proibia o que o Exército acabara de fazer naquele ano: desrespeitar as instituições constitucionais", analisou, em O Globo.
A fala do presidente e a forma como o artigo tem sido usado por seus apoiadores, de acordo com o professor de Direito constitucional da FGV-SP Roberto Dias, fazem parecer "como se houvesse uma previsão constitucional que dá às Forças Armadas a função de um poder moderador".
Essa foi a tese defendida por Ives Gandra, e compartilhada por Bolsonaro. Para Gandra, em artigo publicado no site Conjur no último dia 28, a Constituição prevê que "se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para reportar, naquele ponto, a lei e a ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante".
Ele também foi citado por deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, que em entrevista à rádio Bandeirantes, opinou na mesma linha. "Vou me valer de novo das palavras de Ives Gandra Martins: o poder moderador para restabelecer a harmonia entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas. Eles [militares] vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o jogo democrático. É simplesmente isso".
O Poder Moderador era previsto na Constituição do Império de 1824, e ele funcionava como mediador entres os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em caso de divergências, dando a última palavra.
"Estamos na vigência da Constituição de 1988, que não prevê um poder que estaria acima dos outros para intermediar. A Constituição não dá às Forças Armadas o poder de intervenção militar em outros Poderes", explicou Dias.
Na prática, de acordo com a professora de Direito Vania Aieta, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o fato de o artigo estabelecer as Forças Armadas sob a autoridade do presidente da República permite que ele as acione em caso de guerra com outros países, ou em casos como auxílio a grandes eventos, como na Copa do Mundo, mas não dá a ele o direito de intervir em outros Poderes.
"Muito pelo contrário, diz explicitamente que 'são instituições nacionais permanentes e regulares' destinadas 'à garantia dos poderes constitucionais', não à intervenção neles".
"A possibilidade de um dos Poderes convocar as Forças Armadas existe, por exemplo, caso haja um ataque armado de militantes ao Supremo, ao Congresso, à Presidência da República, em que eles podem chamar para se defender. Mas de maneira nenhuma esse artigo justifica o ataque de um Poder ao outro", explica Estefânia Barbosa, da professora da UFPR.
O advogado constitucionalista Guilherme Amorim Campos da Silva também faz esta interpretação. "As Forças Armadas entram em ação a pedido de algum dos Poderes constituídos para garantir a institucionalidade do país e não para atuar como força autônoma ou soberana sobre os demais", afirma.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta