Quinze anos atrás, a hoje governadora interina Jaqueline Moraes (PSB) já dava expediente no Centro de Vitória, ali bem pertinho do Palácio Anchieta. A Praça Costa Pereira era o local de trabalho dela, que ganhava a vida como camelô. A lida como comerciante informal fez com que a banca dela fosse, algumas vezes, visitada pela polícia. Pela mesma polícia que entre esta sexta-feira (20) e a próxima está sob o comando da ex-vendedora.
A transmissão do cargo de chefe do Poder Executivo para a vice, em razão de viagem do governador Renato Casagrande (PSB) à Itália, é um fato histórico. Desde a proclamação da República, em 1889, é a primeira vez que uma mulher senta à cadeira mais importante do Palácio Anchieta.
A trajetória de Jaqueline dá ainda mais carga simbólica ao fato. Natural de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, veio para o Espírito Santo ainda menina. Mulher negra e mãe de três filhos (Mirielly, 25; Avellyna, 17; e Isac, 3), mora ainda hoje no bairro Operário, em Cariacica, onde destacou-se como líder comunitária. Hoje, aos 44 anos, está no oitavo período do curso de Direito.
Além da atuação ativa no bairro, liderou uma associação de vendedores ambulantes. De 1994 a 2007, ela e o marido, o ex-vereador e também ex-camelô Adilson Avelina (Podemos), tiravam o sustento da família da Praça Costa Pereira, com todas as intempéries inerentes a esse tipo de ofício.
"Naquele momento eu lutava pela minha sobrevivência, pelo direito de poder comer, de poder investir. Nossa luta é para que as mulheres e toda a sociedade tenham esse direito. Passaram 15 anos, as lutas continuam. Não as mesmas. Mas o desejo de ver uma sociedade melhor, mais justa e mais igualitária continuam", disse após ser a primeira mulher no Estado a dar o autógrafo no livro oficial de posse.
A atividade informal já fez Jaqueline ter mercadorias apreendidas e ser levada para esclarecimentos no Departamento de Polícia Judiciária (DPJ), como mostram registros de 2004 de A Gazeta.
A segunda filha de Jaqueline era bem pequena na época da venda de mercadorias, mas guarda algumas lembranças marcantes. "Essa parte de quando fomos camelô foi a em que mais passamos sufoco, tanto financeiramente quanto de moradia e essas coisas. Hoje, na mesma cidade em que batalhamos tanto, estar num nível melhor é algo que marca bastante", contou Avellyna. Já filiada ao PSB, ela não descarta seguir os passos dos pais nas política.
A cerimônia de transmissão do cargo realizada nesta sexta em alguns momentos lembrou as solenidades oficiais de 1º de janeiro. A massa de convidados e apoiadores não coube na antessala do gabinete oficial e levou o evento para o Salão São Tiago. Na entrada do ambiente, Jaqueline recebeu inúmeros cumprimentos, flores e sacou dezenas de selfies.
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"Quando você tem a vivência na veia, quando você sabe o que já passou e seus desafios são grandes, ou você chora ou você vende lenço. Eu sempre escolhi vender lenço (...) É um momento histórico. As mulheres precisam dessa representatividade. Não só elas, mas os negros. Precisam ocupar os espaços de fala, de poder, de decisão", comentou.
Além de recontar a própria história, a governadora interina aproveitou parte do discurso para lembrar das incertezas que pesaram sobre a capacidade dela de substituir Renato Casagrande. "Ainda na campanha, ouvi questionamentos do tipo: 'será que essa mulher conseguirá governar o Estado?' Questionamentos mais maldosos diziam: 'o governador não poderá pegar nenhuma gripe'."
Respondeu esses comentários com a seguinte frase: "o bom líder não precisa saber todas as respostas. Basta fazer as melhores perguntas, cercar-se de pessoas melhores que ele e servir e empoderar os outros".
CANDIDATURA
Em 2018, Jaqueline disputaria uma vaga na Câmara dos Deputados. Como não é rara a remoção de candidaturas femininas em eleições, ela achou que esse seria o mote de Renato Casagrande para com ela em conversa no período da pré-campanha anterior.
A remoção foi confirmada, mas para "promovê-la" à candidata a vice. "Eu tinha plena convicção que era fundamental que expressássemos o que as mulheres conquistaram, o direito de fazer parte das decisões do centro do poder no Estado. Era importante que o sinal que estivéssemos dando para a sociedade era o de estarmos reconhecendo todo o caminhar das mulheres no Estado. Ter uma vice era esse reconhecimento", discursou o governador nesta sexta.
Também foi a primeira vez que a chefe do cerimonial do Palácio Anchieta, Hilda Cabas, aos 91 anos, organizou a transmissão de cargo para uma mulher. "É emocionante. Pela primeira vez uma mulher, negra, ocupa esse espaço. É muito orgulho para nós. Fiquei feliz", disse.
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A semana de um governador ou de uma governadora não é só de homenagens, fotos e tapas nas costas. Há uma série de crises, decisões complexas e demandas a serem resolvidas.
"Temos um alinhamento no governo de conduzi-lo com muito diálogo. É um governo que dialoga com tudo. Nem tudo nós podemos fazer. Mas o que não pudermos vamos olhar no olho e falar a verdade. As pessoas precisam entender que a política tem que ser um instrumento de verdade, olhar no olho, dizer o que dá e não dá e de perguntar 'vamos resolver juntos?'".
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