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Juiz das garantias: o que é e como deve funcionar

Juiz das garantias: o que é e como deve funcionar

Entenda a criação do juiz das garantias, que recebeu aval do presidente Jair Bolsonaro, contrariando o ministro Sergio Moro

Publicado em 6 de janeiro de 2020 às 20:27

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Ministro da Justiça, Sergio Moro foi contra a criação do juiz das garantias, mas o presidente Jair Bolsonaro sancionou mesmo assim. (IsaacAmorim/MJ)

A figura do juiz das garantias foi inserida no meio do pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, na Câmara dos Deputados, contrariando o próprio Moro. Mas o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou o texto, depois de aprovado também pelo Senado.

A criação do juiz das garantias colocou Moro e Bolsonaro em lados opostos. Ela também acirrou os ânimos entre os chamados lavajatistas (apoiadores da Operação Lava Jato) e os bolsonaristas. Mas, afinal, o que é o juiz das garantias? Como isso vai funcionar? Aliás, vai funcionar?

O QUE ACONTECEU ATÉ AGORA?

Moro propôs o pacote anticrime, que não previa o juiz das garantias. A Câmara dos Deputados, no entanto, alterou alguns pontos do texto e inseriu essa figura. O Senado manteve o projeto. E Bolsonaro sancionou, ou seja, transformou mesmo em lei. Moro foi contrário, mas não adiantou.

O QUE É JUIZ DAS GARANTIAS?

Até agora, não havia essa figura no Brasil. O juiz das garantias vai cuidar das decisões durante o processo de investigação, antes, portanto, do julgamento. Nessa fase, por exemplo, pode ocorrer a decretação de prisão preventiva, expedição de mandado de busca e apreensão, interceptação telefônica, quebra de sigilos fiscal, bancário e outras questões relacionadas à obtenção de provas. Tudo isso precisa de autorização do Judiciário para ser feito. 

Hoje, um mesmo juiz decide sobre essas ações e, depois, se a pessoa que é alvo da investigação deve ser condenada ou não. Com a Lei 13.964/2019, que altera o Código de Processo Penal, dois juízes vão ter que se debruçar sobre um mesmo caso. Um cuida das decisões necessárias na fase de investigação (o das garantias) e o outro, da sentença.

QUANDO A LEI COMEÇA A VALER?

A Lei 13.964/2019 foi publicada por Bolsonaro no dia 24 de dezembro de 2019. Sim, na véspera de Natal. O texto determina que passaria a valer 30 dias depois. Ou seja, em 23 de janeiro o juiz de garantias já deveria estar implementado.  Dias antes, no entanto, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, adiou a aplicação da medida por seis meses. Era o recesso do STF e Toffoli estava no plantão.

Depois, quem assumiu foi o vice-presidente, Luiz Fux, que é também o relator das ações contra o juiz das garantias na Corte. Fux suspendeu a implementação por tempo indeterminado.

E ONDE SÓ TEM UM JUIZ?

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 40% das comarcas no Brasil têm apenas um juiz. Quem seria o juiz das garantias nesses locais? A lei prevê um rodízio: "Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados".

QUAIS PAÍSES TÊM JUIZ DAS GARANTIAS?

Itália (lá houve a Operação Mãos Limpas, que inspirou a Lava Jato, já com juiz de garantias), Alemanha, Chile, Argentina e outros.

POR QUE O SISTEMA JUDICIAL COM O JUIZ DAS GARANTIAS SERIA MELHOR?

Os defensores da medida argumentam que isso daria mais isenção ao juiz que vai decidir se a pessoa é culpada ou inocente. Atuando também na fase de investigação, o magistrado poderia se deixar influenciar pela acusação. 

"Isso traz mais segurança ao jurisdicionado no sentido de que o juiz que vai dar a decisão é um juiz que vai ter equidistância do caso. É uma experiência positiva nos países em que ele existe. E realmente penso que os diálogos revelados pelo Intercept entre o juiz Moro e o Ministério Público fazem com que se torne ainda mais necessária uma medida como essa para que não se questione o exercício da função jurisdicional, o que abala a credibilidade do Judiciário", afirma o advogado constitucionalista Mamede Said Maia Filho.

"Vão existir questões de ordem prática que têm que ser contornadas. No médio e longo prazos a medida é positiva. Os problemas operacionais não podem desmerecer o acerto, que é a criação da figura de um juiz que, diferentemente do que dirige a instrução processual, vai decidir com mais parcialidade e isenção", complementa. 

POR QUE, NA PRÁTICA, PODE NÃO SER TÃO BOM ASSIM?

O Judiciário brasileiro não é conhecido pela agilidade. Tem muitos processos, burocracia, papelada e deficit no número de juízes. Colocar dois magistrados para cada causa dificilmente vai acelerar as coisas. Pode até piorar. 

"Esse é um risco", pontua o professor de Direito Constitucional e Penal Ricardo Gueiros. "O objetivo da criação do juiz de garantias não é a celeridade", lembra. "O principal problema é: Por que o juiz que vai julgar não é isento para falar sobre as demais coisas, a prisão, a interceptação telefônica. Por que a princípio vou duvidar dele? Se ele for parcial para isso existem recursos para o Tribunal de Justiça. Com isso está se criando cada vez mais desmembramentos", critica.

"Está criando mais necessidade de juízes e cargos sem garantia que vai haver maior garantia ao acusado. É presumir algo que não se pode presumir", alerta. 

FLÁVIO BOLSONARO PODE SER BENEFICIADO?

No meio da discussão teórica e das dificuldades práticas para a implantação do juiz de garantias no Brasil, há uma discussão política. A caneta do presidente Jair Bolsonaro poderia ter beneficiado o senador Flávio Bolsonaro, filho dele. 

Flávio é investigado, suspeito de lavagagem de dinheiro e peculato (desvio de dinheiro ou bem público) por meio de "rachadinha" ou rachid, que é a prática de ficar com parte dos salários de servidores públicos. E esses não necessariamente trabalhavam no gabinte do então deputado estadual, que é o cargo que Flávio ocupava na época dos fatos sob apuração. 

Se o juiz das garantias fosse aplicado a casos já em andamento, o juiz que cuida do processo de Flávio Bolsonaro poderia ser impedido de julgá-lo. O próprio presidente Bolsonaro já criticou esse juiz, Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau. Aliás, o presidente já disse até que, se pudesse, teria "cancelado" a investigação que mira o filho. 

VALE PARA CASOS EM ANDAMENTO?

Ricardo Gueiros diz que, sob a ótica do Direito Processual Penal, a lei pode, sim, retroagir. A questão, no entanto, também é política. Juridicamente falando também há dúvidas. O juiz das garantias seria aplicado a casos em que um magistrado já proferiu decisões na fase de investigação? Valeria somente para casos que ainda estão sob a alçada da Polícia Civil? 

"Por exemplo: Houve um assalto em Vitória. O juiz já determinou a prisão preventiva (portanto, antes do julgamento) do assaltante. Depois determinou a soltura. O Ministério Público pediu para prender de novo. Quem vai atuar? O juiz de garantias ou o que já atuou? E se for um caso que o juiz não atuou de forma nenhuma porque só estava na fase de inquérito? É com o juiz ou com o de garantias Juridicamente falando, sob o ponto de vista constitucional e legal a lei vale de imediato inclusive para casos que estão tramitando. Mas analisando caso a caso a situação é complexa. Tem que esperar o Supremo Tribunal Federal", resume Gueiros.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um grupo de discussão para analisar o pacote anticrime. 

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