A Justiça determinou a indisponibilidade de até R$ 865,6 milhões em bens de dez empresas do ramo de limpeza investigadas por formação de cartel para fraudar, entre 2013 e 2018, licitações da Secretaria de Estado da Educação (Sedu) e de prefeituras. As companhias também ficaram impedidas de disputar novos contratos com o poder público.
A decisão do juiz Mário da Silva Nunes Neto, da 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Vitória, é do dia 20 de fevereiro e deferiu parte dos pedidos feitos pelo Ministério Público Estadual (MPES), que investiga o grupo por meio da Operação Assepsia.
O bloqueio de bens ocorreu em uma ação civil pública que apura responsabilidades das empresas algumas conhecidas por décadas de atuação no mercado. Algumas já conseguiram o desbloqueio de parte dos valores confiscados para quitar obrigações.
Há, ainda, um processo sobre o mesmo tema em tramitação na esfera penal, sob sigilo.
O valor suspenso diz respeito a R$ 288,5 milhões em contratos obtidos pelas empresas, mas com uso de práticas suspeitas. A título comparativo, o orçamento da Assembleia Legislativa para todo o ano de 2019 é de R$ 214,3 milhões.
Ao definir o tamanho do bloqueio, a Justiça considerou mais duas vezes o valor dos contratos R$ 577,1 milhões para cobrir possíveis danos extrapatrimoniais. Daí, os R$ 865,6 milhões.
GRUPO ESPECIAL
A investigação foi iniciada em 2017, quando o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MPES, passou a apurar possíveis irregularidades em pregão lançado no ano anterior pela Sedu. A secretaria contratou empresas para a limpeza e conservação de escolas e unidades administrativas.
O Gaeco concluiu que as três empresas que arremataram os quatro lotes em disputa agiram em conluio para se manterem nas áreas em que já atuavam com contratos emergenciais. Foram elas: a Conservo, vencedora dos lotes 1 e 3; a Braslimp, vencedora do lote 2; e a Serdel, vencedora do lote 4.
Elas eram terceira ou quarta colocadas na lista de melhores lances, mas acabaram vencedoras dos lotes do pregão. A Braslimp tem como operador o vereador da Serra Nacib Haddad (PDT), segundo a investigação.
"O longo e bem realizado trabalho investigativo desenvolvido pelo Gaeco foi suficiente para delinear a existência de prévio ajuste das licitantes no Pregão Eletrônico nº 037/2016 Sedu", afirmou na decisão o magistrado, para quem "são bem perceptíveis os indícios de cartelização".
Os lotes pagos às empresas pela Sedu somam R$ 118,3 milhões. O restante dos contratos suspeitos, no total de R$ 170,1 milhões, é com prefeituras do Estado. A investigação contou com trabalho de cooperação entre o Gaeco e a Secretaria Geral de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado.
Os órgãos identificaram empresas que participaram do pregão da Sedu e que tinham contratos com indícios de fraudes no mesmo período, em julho de 2016, com prefeituras. Por amostragem justificada, analisaram a situação em quatro delas. E uma série de suspeitas em relação às empresas foram encontradas, como desistências e desclassificações suspeitas, uso de documentos falsos ou forjados e ausência de competitividade em licitações.
Para a investigação, há vínculo entre as dez investigadas nas licitações da Sedu e das prefeituras.
"Foi possível constatar a existência de inúmeros indícios de irregularidades que assinalam para um modus operandi padrão que resultam no favorecimento indevido de algumas empresas, viabilizada com a coautoria ou participação pelo consentimento e participação de outras pessoas jurídicas no processo de contratação", diz o relatório consolidado da secretaria do TCES sobre a Operação Assepsia.
Também foram denunciadas pelo MPES outras cinco empresas que participaram da licitação da Sedu e de prefeituras: Servilimp, Vix Serviços, Brutus, Liderança e RT.
Oficina criada às vésperas de pregão ofereceu menores preços
Uma pequena oficina mecânica, a AMV, sem qualquer experiência com serviços de limpeza e cujo CNPJ fora adquirido apenas 28 dias antes do pregão da Secretaria de Estado da Educação (Sedu), ofereceu o melhor lance (menor preço) para todos os quatro lotes em disputa.
Em seguida, foi desqualificada por não apresentar a documentação exigida. Para o Ministério Público Estadual (MPES), a investida fez parte de uma ação conjunta para dar aparência de legalidade ao certame.
A segunda colocada nos quatro lotes era a Serge, que também não cumpriu exigências do edital e acabou desclassificada.
As três empresas vencedoras já atuavam nas respectivas regiões designadas em cada lote, não competiram entre si em seus respectivos lotes e arremataram o serviço por valores muito próximos ao custo máximo que a Sedu estipulou no edital (veja infográfico acima).
Outras empresas supostamente interessadas nos contratos ofereceram lances.
Em depoimento considerado "eivado de contradição" pela Justiça, a sócia da oficina chegou a dizer que só tinha interesse em um dos quatro lotes que tentou.
Na última sexta-feira, equipe de A GAZETA foi ao endereço onde funcionou a AMV, em Vitória, mas encontrou portas fechadas e a identificação visual já não mais existia. Segundo dados da Junta Comercial, ela mudou de endereço.
LIGAÇÃO REVELA PEDIDO DE DOCUMENTO FALSO
As quebras de sigilos telefônicos e telemáticos, autorizadas pela Justiça, revelaram que representantes de empresas chegaram a negociar documento falso para participar da licitação e a combinar depoimentos após tomarem ciência da investigação em curso.
Essas informações estão na denúncia criminal oferecida à Justiça pelo Ministério Público Estadual (MPES), por meio de seu Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco).
O documento sigiloso, ao qual a reportagem de A GAZETA teve acesso, pede a condenação de 14 denunciados por crimes de fraude em licitação, associação criminosa e o ressarcimento de R$ 865,6 milhões aos cofres públicos. Todos são sócios ou representantes de empresas.
"Identificou-se a existência de engrenagem criminosa comandada e operada por sócios, administradores e representantes de pessoas jurídicas, que definiam previamente quem iria vencer determinado certame ou conjunto deles, com divisão de mercado e rodízio, supressão de propostas ou propostas pro forma", diz a peça do órgão ministerial.
Uma das conversas obtidas pelos investigadores é entre uma pessoa identificada apenas como Luciano e Marcela de Barros Augusto, sócia da oficina AMV, a empresa criada às vésperas do pregão da Sedu.
No diálogo, segundo o MPES, ela solicita falso atestado de capacidade técnica "pra aquele negócio da licitação", pede para o interlocutor "inventar" algum endereço para a empresa ou, ainda, "procurar um terreno baldio e passar o endereço".
Vereador
Para o MPES, o vereador da Serra Nacib Haddad (PDT) é o sócio de fato da Braslimp, empresa apontada como integrante do cartel e que arrematou o segundo lote do pregão da Sedu por R$ 33,5 milhões. Nos documentos oficiais, ele é apenas um ex-sócio.
A investigação mostrou que entre a publicação do edital e o encerramento da sessão do pregão eletrônico da Sedu, Nacib e Evandro Moreira, procurador da empresa Serdel, mantiveram diversos contatos telefônicos. Para o MPES, aí está mais um indício do conluio.
As conversas não se restringiram ao período do edital. Entre 2015 e 2018, ambos mantiveram 107 contatos telefônicos. Na mesma época, foram 164 ligações para José Perovano e 27 para Marcos Silva, sócio-administrador da Serge, companhia também acusada de fazer parte do cartel.
"Desconfiança do cartel, entendeu?"
Em dezembro de 2017, havia chegado ao procurador da Serdel, Evandro Moreira, e ao preposto da empresa, Paulo Meriguete, por meio de um servidor da Sedu, a informação de que o Tribunal de Contas do Estado (TCES) instaurara uma auditoria para analisar o pregão da secretaria e que provavelmente auditores do órgão entrariam em contato com representantes das empresas licitantes.
No dia seguinte, narra a denúncia, o procurador da empresa ligou para o sócio da firma, José Ricardo Perovano, e mencionou a desconfiança do TCES com relação aos contratos da pasta de Educação.
Na ligação, aponta o Ministério Público do Espírito Santo, eles combinam que todos os representantes das empresas que participaram da licitação devem apresentar o "mesmo discurso".
"Combinam que todos os representantes das empresas licitantes que forem chamados devem apresentar o mesmo discurso (mas tem que ser isso mesmo, falar a mesma linguagem). Em determinado trecho da conversa, Evandro demonstra preocupação com a auditoria do TCES e, ciente dos atos praticados, afirma que o negócio ali é a desconfiança do cartel, entendeu?", salienta trecho da denúncia do MPES.
LOTE
A Serdel venceu o lote 4 por R$ 28,8 milhões, valor R$ 13,1 mil abaixo do valor máximo que a Sedu pretendia pagar pelo lote.
Cada lote dizia respeito a unidades escolares de um conjunto de municípios.
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