As Câmaras Municipais da Grande Vitória aprovaram, nas últimas semanas, projetos de lei para classificar as igrejas como atividades essenciais em períodos de calamidade de saúde pública, como o da pandemia do novo coronavírus. Em Cariacica e Vila Velha, inclusive, as leis já foram sancionadas. Seguindo a tendência e a pressão de líderes religiosos, a Assembleia Legislativa do Estado também aprovou uma lei de mesmo teor, que seguiu para sanção do governador.
O pano de fundo dessa movimentação, no entanto, vai além da necessidade de que as igrejas estejam abertas e perpassa por interesses políticos. Em ano de eleições municipais, a maioria dos parlamentares, incluindo os proponentes das matérias, pleiteiam a reeleição ou a cadeira de prefeito das cidades.
Os mais diversos segmentos religiosos representam grandes comunidades, o que, na perspectiva eleitoral, pode se converter em votos. Por isso, é comum que políticos mantenham a aproximação com lideranças religiosas e busquem atender a seus pedidos, principalmente em período eleitoral.
Com as igrejas consideradas atividades essenciais, celebrações podem voltar a ser convocadas com a presença de fiéis e dos próprios políticos, que, muitas vezes, durante as campanhas, utilizam os templos para "serem vistos" e até discursarem.
Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que legislar para atender a pedidos de grupos que formam uma boa base eleitoral é comum no Brasil, mas compromete a função do legislador, que deveria agir de forma democrática, considerando o que é o melhor para o coletivo, e não priorizando alguns segmentos.
Apesar da tendência para uma estabilização na transmissão da Covid-19 na Grande Vitória, autoridades de saúde reafirmam que não é o momento para relaxar as restrições, e que, para manter essa estabilização, é preciso que as medidas de isolamento social sejam respeitadas. A doença continua avançando pelo Estado. Mais de 2 mil capixabas já morreram e 68 mil foram contaminados pelo novo coronavírus.
Além dos números que continuam altos, ainda não há vacina ou medicamentos com eficácia comprovada para combater o coronavírus, o que significa que o distanciamento entre os cidadãos ainda é a principal forma de prevenção da doença. É isso que preocupa cientistas políticos e autoridades em saúde, ouvidos por A Gazeta, sobre a reabertura de templos e o retorno de cerimônias religiosas.
Mesmo com a criação de protocolos para maior segurança dos fiéis, cultos e missas em locais fechados, com reunião de grupos de pessoas, representam risco de contaminação. Especialistas pontuam que líderes responsáveis não deveriam colocar os membros das igrejas em risco. Para eles, o fechamento dos templos não impede a assistência espiritual.
Os argumentos que justificam as medidas, em todas as Casas Legislativas, é semelhante. Parlamentares afirmam que igrejas são "hospitais para alma e coração" das pessoas, que neste momento de pandemia têm se sentido "emocionalmente e espiritualmente carentes".
Para o vereador Pastor Ailton (PSC), autor do projeto de lei aprovado na Câmara da Serra, a criação das leis só ocorreu agora, após quatro meses de pandemia, porque as lideranças religiosas acreditavam que o fechamento das igrejas não seria tão demorado. Para ele, no entanto, as instituições religiosas precisam ficar abertas mesmo em um possível "lockdown", medida preparada para o mais alto grau de risco da pandemia, na escala do governo estadual.
Esses argumentos também aparecem na justificativa do projeto de lei aprovado na Câmara da Capital, de autoria do vereador Leonil (Cidadania).
Em Vila Velha, onde a lei já foi sancionada, o vereador Reginaldo Almeida (PSC), que também é ministro do Evangelho na Igreja Assembleia de Deus, sustenta que todas as medidas de precaução, ditadas pela Secretaria de Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), estão sendo cumpridas.
"Está lá [na lei] todos os requisitos e as orientações. Distanciamento social, higienização das mãos e dos espaços, grupos de risco estão sendo orientados a não ir", disse. Um dia depois da aprovação da lei na Câmara Municipal, um casal de pastores da Igreja Quadrangular morreu, vítimas da Covid-19, com horas de diferença.
O autor da proposta na Câmara de Cariacica, Itamar Freire (PDT) é membro da Assembleia de Deus. O parlamentar admite que a lei foi uma forma de atender a pedidos que recebeu de lideranças religiosas.
De acordo com ele, com a divergência entre o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e dos governos estaduais e municipais, a "cabeça das pessoas ficou confusa" e agora, com a lei, a reabertura das igrejas vai ocorrer de forma mais organizada.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro se declara contra a medida imposta por Estados e municípios de todo o país. "Tem gente que quer fechar igreja, [que] é o último refúgio das pessoas", disse, em março.
Na Assembleia Legislativa do Estado, os deputados também se articularam para aprovar a matéria sobre o tema. O texto, assinado pelos deputados Danilo Bahiense (PSL) e pastor Marcos Mansur (PSDB), ambos evangélicos, chegou a ter o regime de urgência rejeitado, na metade de junho. A lei vedava a determinação de fechamento total das igrejas.
Semanas depois, uma emenda do vice-líder do governo na Casa, Dary Pagung (PSB), alterou o trecho, dispondo que a lei "estipula regras para seu funcionamento nesse período", e a matéria foi aprovada sem votos contrários. Foram favoráveis os parlamentares que são médicos e pré-candidatos a prefeituras de municípios da Grande Vitória.
Os argumentos utilizados para defender os projetos de lei se assemelham à opinião do presidente da Associação de Pastores Evangélicos da Grande Vitória, pastor Enoque de Castro. Para o líder religioso, a igreja é essencial e é importante que "os membros estejam unidos para buscar a Deus". O pastor afirma que "existe o essencial para o físico e o essencial para o espiritual". "Os irmãos querem estar juntos, orando, buscando a Deus neste momento de angústia. Pesquise o quanto aumentou o número de casos de depressão e ansiedade."
Nem todos os religiosos, no entanto, pensam assim. Apesar da liberação para cultos, algumas igrejas evangélicas já comunicaram a seus membros que não vão retomar as atividades por enquanto. A Convenção Batista do Espírito Santo, que possui 722 igrejas em todo Estado, recomendou aos seus líderes que sigam o que está estipulado pela Secretaria estadual de Saúde.
O presidente da entidade, pastor Diego Bravim, explica que cada igreja tem autonomia para decidir. Ainda que considere a fé como elemento essencial, não avalia que seja urgente a retomada dos cultos. "A igreja somos nós, as pessoas. O próprio Cristo disse que nosso corpo é o templo. As celebrações coletivas são para comunhão, mas a fé não carece disso", disse.
A Arquidiocese de Vitória enviou uma carta com as recomendações necessárias para a reabertura das paróquias. Contudo, de acordo com a assessoria, nenhuma igreja foi aberta porque "nenhum município apresenta condições para isso".
Para o doutor em Ciências da Religião e professor da Ufes Edebrande Cavalieiri, cresce no Brasil a tendência de instrumentalizar a religião para uso como força política. O movimento, de acordo com o professor, começou nos Estados Unidos com o grupo da "direita cristã" e tem se espalhado pelo mundo.
Essa influência religiosa, na avaliação de Cavalieri, é perigosa. "Vai contra o estado laico, a separação entre Igreja e política. Para ser democrático, é preciso abrir o leque das pautas legisladas para todas as religiões e, até mesmo, ateus."
A tradicional crença de que a família brasileira é cristã, para o doutor em Ciências da Religião, é equivocada. "Temos ateus, religiões de matrizes africanas, espiritismo... E o que preocupa é que esse movimento que tem crescido não é um movimento aberto para o diálogo e de tolerância. É um movimento que interpreta textos bíblicos ao pé da letra, e a partir dele promove escolhas políticas." Os candidatos, completa o professor, por saberem disso, muitas vezes, dão um apoio quase incondicional ao interesse de grupos religiosos.
Cavalieri discorda, ainda, do paralelo feito pelos líderes religiosos entre a essencialidade de igrejas e outras atividades como hospitais e padarias. "A dimensão religiosa é parte da cultura, da natureza humana. As pessoas tendem a buscar essa ajuda sobrenatural no momento de dor, doenças e dificuldades. Nesse sentido, é uma atividade importante, talvez essencial. Mas não essencial como uma padaria ou um supermercado. Porque nem todas as pessoas têm essa dimensão como uma necessidade."
O cientista político e médico Fernando Pignaton acredita que esse movimento nos Legislativos aponta para um sistema político que "cada dia mais busca o interesse de grupos e corporações". Para Pignaton, a decisão é irresponsável e anticientífica tanto do ponto de vista político quanto do médico. "A pandemia, que deveria ser uma discussão científica, vira uma discussão política, porque a agenda está livre e grupos de influência podem monopolizar a pauta com os próprios interesses."
O forte interesse no apoio do grupo de eleitores evangélicos e católicos fez, segundo ele, com que parlamentares ignorassem o pedido que é repetidamente feito para que o isolamento social seja mantido até que a curva de contágio comece, de fato, a cair. "Esse zigue-zague de atender a um grupo depois a outro, à medida que eles fazem pressão, torna enfraquecida a política de desenvolvimento do país como nação e torna o Estado desfuncional, porque os legisladores atuam ao sabor dos grupos de influência", complementou.
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