Entre todas as capitais brasileiras, Vitória foi a que, proporcionalmente à população, recebeu a maior quantidade de cloroquina do Ministério da Saúde. Em 2020, foram enviados ao município 54 mil comprimidos do medicamento, que não tem eficácia para o tratamento de Covid-19 e pode causar efeitos colaterais graves.
A quantidade de cloroquina recebida por Vitória seria suficiente para medicar 15% dos habitantes da cidade, cuja população era de 365 mil em 2020, de acordo com o IBGE. Segundo a Prefeitura de Vitória, menos da metade (32%) do medicamento enviado foi utilizada.
Os dados fazem parte de um levantamento realizado pela revista piauí e considera apenas o que foi repassado pelo governo federal às capitais, sem contabilizar compras que possam ter sido feitas pelo Estado ou diretamente por municípios.
Em julho do ano passado, a cloroquina foi incluída no protocolo municipal de Vitória para tratar pacientes com Covid-19. Na época, o prefeito era o médico Luciano Rezende (Cidadania). A decisão foi mantida pelo atual prefeito, Lorenzo Pazolini (Republicanos).
Até a noite desta quinta-feira (25), a Capital do Espírito Santo acumulava uma taxa de 209 mortes por Covid-19 a cada 100 mil habitantes. O indicador é 46% maior do que a taxa brasileira, que, na mesma data, chegou a 143 mortes por 100 mil habitantes.
A cloroquina é um medicamento utilizado para o tratamento da malária, mas virou uma bandeira política do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Desde o início da pandemia, o chefe do Palácio do Planalto defende, sem qualquer embasamento científico, o uso do remédio contra a Covid-19.
Na gestão do general do Exército Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde chegou a mudar o protocolo para permitir a prescrição da cloroquina, mesmo com a recomendação de diversas autoridades na área, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), para não utilizar o medicamento. Os antecessores de Pazuello, os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, recusaram-se a fazer o mesmo.
Com a pressão popular para ter acesso aos remédios, graças à divulgação feita pelo presidente da República, prefeitos bolsonaristas no Espírito Santo passaram a incluir a cloroquina em seus protocolos. No entanto, isso também atingiu chefes do Executivo de espectro político oposto ao de Bolsonaro, como foi o caso de Luciano Rezende, ex-prefeito de Vitória.
Luciano nunca manifestou em público simpatia pelo presidente Jair Bolsonaro. Filiado ao Cidadania, partido de centro-esquerda, o prefeito de Vitória faz parte da base do governador Renato Casagrande (PSB), crítico da condução do governo federal na pandemia.
Mas ao decidir por utilizar a cloroquina no protocolo municipal, Luciano, que é médico, ignorou a recomendação da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), que não indica o uso do medicamento contra Covid-19, e de infectologistas de renome no Estado. Na época, o prefeito alegou que adotou o chamado "tratamento precoce" por haver evidência científica e resultados positivos em vários locais do Brasil.
Quando Vitória implementou o protocolo, ainda não se sabia da gravidade dos efeitos colaterais do remédio, mas já era comprovada a ineficácia da cloroquina no tratamento para Covid-19. Autoridades, como a Sociedade Brasileira de Infectologia, por exemplo, haviam emitido um novo comunicado, recomendando que a cloroquina não fosse usada, devido à falta de benefício comprovado e ao potencial de toxicidade.
Procurado pela reportagem nesta quinta-feira (25), Luciano Rezende disse que a decisão foi tomada, na época, de acordo “com os dados disponíveis no momento, diante de uma emergência sanitária, sem nenhuma perspectiva de vacina ou tratamento de consenso”, e em conformidade com as orientações do Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB) e Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRM-ES).
“Todas essas entidades médicas recomendavam a autonomia para os médicos que desejassem receitar medicações no tratamento precoce do coronavírus. Decisão tomada na emergência sanitária, em que não existia o consenso científico, que só é consolidado com tempo, estudos e pesquisas científicas”, afirmou.
Recentemente, a AMB recuou do posicionamento adotado em julho do ano passado e defendeu que o uso de cloroquina deve ser banido.
Questionado se ainda vê benefícios no medicamento, o ex-prefeito disse não ter como avaliar, no momento. “Penso que é preciso continuar acompanhando o debate científico, livre de ideologias de quaisquer aspectos, para ter um posicionamento seguro e de consenso no futuro”, ponderou.
Dos 54 mil comprimidos de cloroquina que foram enviados a Vitória, menos da metade foi utilizada, segundo a prefeitura. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, 17.500 comprimidos foram distribuídos à rede municipal, o que representa 32% do lote.
Outros 36.500 estão no estoque e foram oferecidos de volta ao Ministério da Saúde.
“Na atual gestão não houve compra nem recebimento de novos comprimidos desse medicamento. No dia 04 de março deste ano, a Secretaria de Saúde, considerando o consumo do medicamento, enviou e-mail ao Ministério da Saúde colocando à disposição todo quantitativo existente no almoxarifado, que é de 36.500 comprimidos”, informou a prefeitura, em nota.
Um ano após o início da pandemia, o uso político da cloroquina no Brasil acabou causando um efeito na saúde pública. Um estudo recente mostrou que hemorragias e insuficiência renal têm sido observados em pessoas que fizeram uso do "tratamento precoce" que, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já afirmou, não existe como tal.
Alguns pacientes acabaram adquirindo doenças graves, como hepatite aguda, e chegaram a ir para a fila do transplante. Os resultados fizeram com que a AMB emitisse um boletim pedindo o banimento do "kit Covid".
Mesmo com todas as evidências e recomendações para o não uso do medicamento, a Prefeitura de Vila Velha incluiu, na última semana, a cloroquina e a ivermectina no protocolo municipal de saúde. A secretária de Saúde do município é Cátia Lisboa, que também esteve à frente da mesma pasta em Vitória na época em que o tratamento precoce passou a ser utilizado na Capital.
Procurada por A Gazeta, via assessoria, Cátia Lisboa informou que o protocolo visa garantir a disponibilidade da cloroquina em Vila Velha “a fim de ofertar alternativas terapêuticas” aos médicos, que têm decisão soberana.
A secretária também destacou que o paciente precisa assinar um termo, que fala sobre os efeitos adversos, no qual concorda com a utilização do medicamento.
Questionada sobre os estudos realizados em Vitória, na época em que a cloroquina foi incluída no protocolo municipal, Cátia Lisboa disse que os resultados foram satisfatórios e que nenhum paciente manifestou evento adverso. O estudo incluiu 437 pacientes, segundo a secretária.
“Não houve registro de eventos adversos ao uso desses medicamentos em nenhum dos pacientes que o utilizaram. E, ainda, 93,3% dos participantes do estudo tiveram como desfecho primário a cura de sua doença. Por meio desse estudo, foi possível concluir que, devido à baixa dosagem e curto período de utilização do medicamento, não existem eventos adversos mesmo em pacientes idosos e com comorbidades”, afirmou.
“Houve ocorrência de um óbito no grupo que utilizou o medicamento e sete óbitos entre os pacientes que não utilizaram o medicamento. É possível compreender que a relação do número de óbitos não pode ser associada à disponibilidade do medicamento cloroquina/hidroxicloroquina em âmbito municipal”, completou.
Apesar da afirmação da secretária sobre a cura de 93,3% dos pacientes, infectologistas apontam que, diante da ineficácia da cloroquina para o tratamento de Covid, as pessoas que se restabeleceram seriam curadas com ou sem o uso do medicamento. Para eles, não é possível associar a cura ao uso do medicamento.
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