Após a Câmara Federal aprovar na quarta-feira (12) o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, a proposta vai seguir para votação no plenário sem passar pelas comissões. Se avançar, ainda terá que ser apreciada pelo Senado. Mas, no que depender da bancada capixaba, a maioria defende aumentar a punição para a interrupção da gravidez, inclusive nos casos de estupro.
Chamado de PL do aborto, o projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 32 parlamentares — entre os quais os capixabas Evair de Melo (PP) e Gilvan da Federal (PL) —, altera o Código Penal, que hoje não prevê punição para aborto em caso de estupro, nem estabelece restrição de tempo para o procedimento nessas situações. O código também não pune o aborto quando há risco de morte para a grávida ou se o bebê é anencéfalo.
Com exceção desses casos em que não há punição, o código prevê detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da grávida; e reclusão de três a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.
Caso o projeto seja aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos em todas as situações, incluindo a gravidez resultante de estupro. A pena é a mesma prevista para o homicídio simples e maior do que a estabelecida para quem pratica estupro, que é reclusão de 6 a 10 anos.
Gilvan da Federal, um dos coautores capixabas, resumiu seu posicionamento em uma frase: "Entendo que o aborto é homicídio", destacando que vai votar a favor quando o projeto chegar ao plenário.
Também favorável à iniciativa, Messias Donato (Republicanos) afirmou que é pró-vida e que vai votar pelo endurecimento da legislação. Ele pontuou que, após 22 semanas de gestação, já há viabilidade para o nascimento.
"O aborto em caso do grave e inaceitável crime de estupro seguirá sendo permitido pela lei, se antes das 22 semanas e, após este período, há a possibilidade de dar à luz e entregar a criança para a adoção, evitando a morte de uma vida e os trágicos danos psicológicos causados à gestante por causa do aborto. Não permitiremos que o Brasil seja conhecido mundialmente como uma nação que assassina crianças no ventre de suas mães", justifica, em nota.
O deputado Da Vitória (PP) disse que é totalmente contra o aborto. "Com a aprovação da urgência, a Câmara vai agora aprofundar o debate para votação de um texto que preserve a vida e os direitos dos bebês", argumenta.
Para Amaro Neto (Republicanos), não se pode aceitar que a Justiça legisle no lugar do Congresso Nacional em uma pauta importante, numa referência à recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro. "Nosso posicionamento e voto são pela vida desde a concepção, contra o aborto", sustenta.
Também procuradores pela reportagem de A Gazeta, Evair de Melo, Gilson Daniel (Podemos) e Jack Rocha (PT) não deram retorno, mas já se manifestaram nas redes sociais. Os dois primeiros para aumentar o rigor da legislação nos casos de aborto, e a deputada contra a iniciativa.
Na postagem de Gilson, ele destaca: "Sou a favor de penas mais duras para quem praticar aborto!"
Evair celebrou a aprovação do requerimento de urgência do projeto que tem sua coautoria e frisou que é um passo gigante na luta pró-vida. "Pela defesa inegociável da vida, desde a concepção até a morte natural!"
Jack se manifestou antes de o pedido de urgência ir à votação e classificou a proposta como um retrocesso. Para ela, a Câmara quer que o país retorne ao início do século passado, quando mulheres violentadas eram obrigadas a gerar filhos de estupradores.
"Se esse projeto seguir, serão ignorados mais de 56 mil casos de estupro de vulnerável no Brasil, e a maioria das vítimas tem menos de 14 anos", afirma a parlamentar, usando dados de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado no ano passado.
Colega de partido dela, Helder Salomão (PT) também é contra a proposta.
"O projeto de lei que tramita na Câmara muda a legislação atual e é absurdo, porque prevê que a mulher, adolescente ou criança estuprada terão pena maior do que o estuprador, caso interrompam a gravidez. Enquanto a pena do estuprador é de no máximo 10 anos, a pena da mulher (criança ou adolescente) pode ser o dobro. Esta proposta é absurda, pois criminaliza a mulher (criança ou adolescente) vítima de estupro e premia o estuprador", avalia.
Paulo Foletto (PSB), que retornou da licença médica esta semana, e Victor Linhalis (Podemos) não deram retorno à reportagem sobre o assunto.
Mesmo se for aprovada na Câmara, a proposta vai precisar passar pelo crivo dos senadores. Fabiano Contarato (PT) já se manifestou contrário à iniciativa. "No PL 1904/24, a mulher é o alvo prioritário da investida violenta de populistas e demagogos. A interrupção da gravidez indesejada é uma medida humanitária, de amparo à vítima de grave violência."
Além da evidente inconstitucionalidade pela violação à dignidade humana, reforçou Contarato, o projeto de lei cria uma tenebrosa distorção e pune a vítima em vez de punir o estuprador. "Trata-se de um verdadeiro retrocesso, cruel e desumano. Não podemos normalizar essa violência institucional contra os direitos das mulheres."
De outra parte, Magno Malta (PL) pontuou que é pró-vida, lembrando que há décadas participa de movimentos contra o aborto e o movimento que usa, segundo ele, o procedimento como método contraceptivo. "O projeto de lei em debate na Câmara Federal, que visa criminalizar o aborto, vai ao encontro da pressão contrária que estamos enfrentando hoje no Brasil. Sou a favor desse projeto, pois acredito que ele ajudará a salvar muitas vidas."
O senador Marcos do Val (Podemos) não deu retorno até a publicação da reportagem.
A professora doutora Andrea dos Santos Nascimento, do Departamento de Psicologia da Ufes, demonstrou preocupação com a possibilidade de o projeto avançar e os impactos da medida na vida de meninas e mulheres vítimas de estupro.
"Para começarmos, o estupro é um crime hediondo. Não podemos de forma alguma deixar de frisar isso. É uma forma de demonstrar poder. As vítimas podem desenvolver uma série de transtornos psicológicos, como ansiedade, depressão, ideação suicida, sensação de impotência, baixa autoestima, e, fisicamente, podem desenvolver também obesidade ou magreza extrema, dermatites diversas", pontua.
E, quando a violência resulta em gravidez, a professora sustenta que não deveria haver limitação de prazo para a realização do aborto. Na sua opinião, o projeto é uma inversão de vítima em culpada.
"Vinte e duas semanas? Muitas crianças nem sabem que ocorreu um estupro pelo próprio pai, padrasto, tio, avô, primo, vizinho... E a vergonha de dizer o que ocorreu? E quando desacreditadas? E quando são acusadas de terem 'seduzido' e provocado o 'crime' por outras mulheres? Não cabe falar em homicídio ou crime doloso em circunstâncias como essa", argumenta.
Esse contexto também se passa com mulheres mais velhas, observa Andrea. Por isso, na opinião dela, deveria haver políticas de aborto legal em todos os Estados do país.
Para a professora, na realidade brasileira, mulheres em condições de vulnerabilidade social e econômica serão as mais penalizadas em caso de aprovação do projeto. E, além disso, a iniciativa em nada vai reduzir a realização de abortos.
"Sabemos que classes mais abastadas irão procurar em sigilo clínicas especializadas para o procedimento, enquanto as pessoas de classes sociais menos abastadas morrerão ou poderão ter sequelas graves pela utilização de métodos inseguros", acrescenta.
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