As discussões sobre o uso de medicamentos para prevenção e tratamento da Covid-19 passaram a ser constantes nas sessões da Assembleia Legislativa do Espírito Santo nas últimas semanas. Deputados estaduais que também são médicos tornaram-se defensores do uso de remédios como a hidroxicloroquina e a ivermectina, apesar dos riscos e da falta de evidências científicas de benefício do uso.
Hudson Leal (Republicanos), que é anestesista, e Rafael Favatto (Patriota), que é ginecologista e obstetra, já declararam, em mais de uma ocasião no plenário virtual que fizeram ou fazem uso de tais medicamentos contra o coronavírus, e que não avaliam que eles oferecem riscos consideráveis à saúde. Favatto, inclusive, já teve a doença. Ambos também relatam que estão expostos ao vírus com frequência, por trabalhar em hospitais.
Os deputados Hércules Silveira (MDB) e Emílio Mameri (PSDB), também médicos, não defenderam os medicamentos, mas participaram de alguns debates.
Os discursos dos parlamentares contrariam o dos próprios colegas especialistas em infectologia, e a posição adotada pela FDA, agência que atua como a Anvisa nos Estados Unidos, que revogou a permissão para tratamento com cloroquina. Pesquisadores afirmam que ainda não existe comprovação científica de que o remédio possa curar a doença, e trata-se de um medicamento com efeitos adversos graves que devem ser levados em consideração.
Infectologistas também avaliam que o tratamento com esses medicamentos é "perigoso, pois tomou um aspecto político inesperado". A Sociedade Brasileira de Infectologia emitiu um novo informe, nesta terça-feira (30), destacando que divulgar processo de tratamento ou descoberta, fora do meio científico, cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente fere o Código de Ética Médica.
Na Assembleia, Favatto começou a defesa das substâncias na sessão do dia 9 de junho, quando já estava quase curado da Covid-19.
"O uso da cloroquina, hidroxicloroquina, da azitromicina é um uso correto para a população. Se tivesse algum parente nosso contaminado eu iria usar, passar, prescrever, porque já tem relatos. Tem colegas nossos que usaram o medicamento e a melhora foi fantástica, fenomenal. A partir do momento que a pessoa estava contaminada, e começou a usar a medicação, com 3 a 4 dias houve a melhora brutal dos sintomas", disse.
Nesta sessão, Mameri se posicionou contra o incentivo à medicação:
"Quem fala sobre medicamentos são pessoas que têm competência para falar. Tem pessoas que usam isso fazendo politicagem. Não vamos complicar a cabeça das pessoas com mentiras", alertou, ainda, Mameri.
Na sessão do dia 24, os deputados voltaram a debater o tema. Hudson Leal frisou que "está claro que na fase da replicação viral, com sintomas leves, o uso da hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e ivermectina tem que ser usado na fase inicial, para o paciente não ir para a fase inflamatória".
"Nós podemos usar sim e com muita segurança, como uma profilaxia. Estou tomando a ivermectina há muito tempo. Dei para a minha família toda, dei para minha mãe que tem mais de 80 anos", acrescentou.
No debate, o deputado José Esmeraldo (MDB), que não é médico e tem 74 anos, disse que iria aderir às indicações.
"Tem que deixar de besteira, pela política. É um comprimido barato, todo mundo pode tomar. Tem que tomar antes que a casa caia. Tenho certeza que dos 30 deputados, mais de 20 já tomaram. E o Favatto foi o maior exemplo. Vou seguir a orientação dele".
Favatto, então complementou: "O remédio que você deve tomar agora é a ivermectina, a cada 20-30 dias, para evitar a doença. A hidroxicloroquina é para tomar se pegar a doença, junto com a azitromicina".
A ivermectina é um antiparasitário, usado contra lombriga e sarna, por exemplo. Em animais, é aplicada para impedir a proliferação de pulgas e carrapatos.
Esta semana, na sessão do dia 30, Hércules Silveira comentou que uma médica especialista foi ouvida na Comissão de Saúde da Assembleia, sobre os estudos da cloroquina, ivermectina, annita, e outras substâncias.
"Não quero entrar nessa discussão porque não sou especialista. Acho que o único que pode falar um pouco disso aí é Rafael Favatto, porque ele tomou o remédio, teve a doença. Como é médico e teve a doença, tem autoridade para falar. Não quero discutir, se é o prefeito que está receitando cloroquina, se é o presidente, o governador do Estado. Isso quem tem que receitar é a ciência".
"Se eu tiver essa doença, vou tomar até chá de esterco de boi. Se disser que fica bom, eu tomo, porque essa doença é horrível, mata", complementou.
Hudson Leal voltou a fazer cometários sobre o tema. "Sobre passar meu conhecimento, não vejo problema, falo com segurança. Hoje, essa grande briga é por causa da indústria farmacêutica. Estou usando a hidroxicloroquina, e não estou doente, porque tenho segurança. Eu estudo, é uma droga segura. Quem não sabe, gosta de criticar. Eu sou médico e tenho CRM, passo hidroxicloroquina para quem é profissional de saúde e está na frente da batalha do vírus", afirmou.
Ele voltou a defender o baixo risco da administração das substâncias. "No meio de uma guerra, pedra também é arma. Medicamentos que temos segurança que não vai dar problema maior do que a doença, você tem que usar. Para quem eu conheço, eu passo. Eu estudo e sei muito medicina".
Nesta terça (30), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu um novo informe com esclarecimentos sobre os diferentes tratamentos farmacológicos já avaliados até agora, destacando que muitas divulgações sobre eles ainda não têm evidência científica.
Sobre a cloroquina, a nota diz que o uso no tratamento da Covid-19 nos primeiros dias de doença, em casos leves e moderados, está sendo avaliado e aguardam-se os resultados, e recomendou que o medicamento não seja usado, devido à falta de benefício comprovado e potencial de toxicidade.
Quanto aos antiparasitários, como a ivermectina, avalia que parecem ter ação contra a Covid-19 no laboratório, porém ainda não há comprovação de eficácia em seres humanos. A nota cita ainda os corticoides, antivirais, anticoagulantes, imunomodulador, plasma convalescente e suplementos alimentares.
A Sociedade também reiterou que a avaliação do uso de qualquer medicamento fora de sua indicação aprovada (off-label) deve ser uma decisão individual do médico, analisando o caso, porém é vedada a publicidade sobre tal conduta, conforme o Código de Ética Médica.
O presidente da sociedade de infectologia do Espírito Santo, Alexandre Rodrigues da Silva, reforçou que ainda não há comprovação de eficácia desses medicamentos citados pelos deputados.
O infectologista Paulo Peçanha frisou que esta discussão deve ser somente científica, e não política. "Essas recomendações desviam o foco da prevenção, para um tratamento supostamente eficaz. A minha preocupação é que as pessoas entendam que por estar tomando uma medicação, e se sentindo tratadas, se exponham ao risco", avalia.
Para o presidente do Conselho Regional de Medicina no Espírito Santo (CRM-ES), Celso Murad, não há nenhuma infração ética na abordagem dos medicamentos pelos deputados nas sessões, pois considera que eles podem discutir publicamente o tema como proposta terapêutica.
"Existem pessoas de bom padrão médico defendendo essa conduta de uso dos medicamentos. É bom que os deputados, que estão trazendo isso ao discurso, passem à ação, para conseguir, junto ao gestor público, esses medicamentos que eles defendem", comentou.
Procurados, os deputados Hudson Leal e Rafael Favatto alegam que não fizeram nenhum incentivo aos medicamentos, apenas fomentaram o debate. Ressaltaram também que defendem o uso somente com prescrição médica individualizada, inclusive por se tratar de remédios de venda controlada.
"Relatei minhas experiências e o que vejo pela prática médica e evidências. Ainda não se sabe tudo sobre o vírus nem sobre os remédios, então é preciso discutir", afirma.
Na mesma linha, comentou Leal. "Não estou receitando, estou dando opinião. Eu prescrevo e tenho muitos bons resultados."
Hércules Silveira destacou que não tem se posicionado contra ou favor, e que não vê problemas éticos nas falas dos colegas.
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