A segurança pública não é a única bandeira usada pelos militares para entrar na política, de acordo com o Fórum de Segurança Pública. O anuário publicado nesta segunda-feira (19) pela entidade aponta que o "fenômeno" do aumento do número de policiais na política se deve, também, a uma narrativa que coloca a política como um "espaço de guerra contra o mal" no qual os militares são vistos como "guerreiros que irão repor a ordem, a moral e os bons costumes".
O crescimento é expressivo. No Espírito Santo, o número de militares candidatos saltou 36% de 2016 para 2020, de 169 para 230, de acordo com anuário. Levantamento feito por A Gazeta, enquanto os pedidos de registro de candidatura ainda eram computados pela Justiça Eleitoral, já mostrava esse aumento. Também cresceu a quantidade dos que conseguiram se eleger. Entre 2012 e 2016, o número dobrou. Foram 12 eleitos em 2012 e 24 no pleito municipal seguinte.
Nas eleições para deputado federal e senador de 2018, o mesmo aconteceu. Enquanto em 2014 nenhum militar foi eleito para ocupar o Legislativo no Estado, em 2018 cinco se elegeram. Os dados são do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e foram publicados no anuário. O levantamento leva em conta candidatos que informaram à Justiça Eleitoral serem integrantes das seguintes carreiras: policial militar, policial civil, policial federal ou rodoviário federal e militar das forças armadas. Também inclui militares da reserva.
O estudo aponta, ainda, que as eleições de 2020 terão papel decisivo na análise do "fenômeno político" que é o policial candidato. Com a bandeira anticorrupção perdendo força, o pleito de novembro pode confirmar a percepção de que os militares estão saindo de discursos como segurança pública e combate à corrupção e migrando para pautas sobre "manutenção da ordem e para agenda de costumes".
Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV, Renato Sérgio de Lima, os dados sugerem que policiais tendem a ser mais eleitos em contextos de crise e insatisfação da população, não só com a economia, mas também com prioridades e ideologias políticas. Nesse cenário, a população buscaria um "guerreiro" capaz de "lutar contra o mal" e trazer de volta o que é considerado ordem, moral e bons costumes.
Com a Operação Lava Jato, por exemplo, a bandeira da luta contra a corrupção era vista como uma guerra contra o mal e motivou delegados e policiais civis e federais a se saírem melhor nas urnas em 2016.
"Nesse processo, vemos que, em termos proporcionais, foram os delegados, mais associados às investigações sobre corrupção, e demais policiais civis e federais, que obtiveram mais êxito nas urnas em 2016, quando 16,7% desse grupo de candidatos foram eleitos", diz o estudo. O dado corresponde ao cenário nacional.
No cenário de 2020, com a bandeira do combate à corrupção perdendo força, mas ainda sob influência da onda conservadora que elegeu o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mais policiais militares podem ser eleitos sob o lema de "resgatar a moral", aponta o anuário do Fórum de Segurança Pública.
Além disso, outro fator que motiva candidaturas e as fortalece, de acordo com Lima, é o corporativismo. Buscar os interesses da própria categoria impulsionou a eleição de mais militares para cadeiras de deputados estaduais, federais e até senadores.
Carolina Ricardo e Felippe Angeli, representantes do Instituto Sou da Paz, que acompanham a atividade legislativa de militares eleitos para a Câmara dos Deputados, afirmam que a maior parte das proposições deles trata de questões corporativas, como aposentadoria, salário e carreira de policiais.
"São poucas as propostas institucionais que visem mudanças na estrutura do campo da segurança pública para melhorar a articulação entre as polícias e/ou com o sistema de justiça criminal. Tampouco há propostas para redefinir o papel dos outros atores que também compõem o campo como os municípios, a segurança privada e os departamentos de trânsito", apontam, no relatório.
O diretor do Fórum de Segurança Pública ressalta, ainda, que falta a compreensão de que segurança pública exige mais do que apenas o uso da ação policial. "A questão da segurança não é moral, exclusivamente afeita aos comportamentos e condutas dos policiais individualmente. É um tema de política pública e, enquanto tal, temos a obrigação ética e legal de alinhá-lo aos pressupostos do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988", alerta.
Lima também aponta que os deputados estaduais exercem um papel de interlocução com a "família policial" e seus interesses mais imediatos. "As Assembleias Legislativas são estratégicas para o fortalecimento do 'Partido Policial'", afirma.
No Espírito Santo, em 2018, quatro policiais foram eleitos para o primeiro mandato como deputados estaduais. Dois policiais militares, Coronel Alexandre Quintino (PSL) e Capitão Assumção (Patriota), e dois delegados da polícia civil, Lorenzo Pazolini (Republicanos) e Danilo Bahiense (ex-PSL, hoje sem partido).
Pelo menos até agora, nas eleições de 2020 nas principais cidades da Grande Vitória o desempenho dos policiais candidatos a prefeito é tímido. Capitão Assumção, que disputa a Prefeitura de Vitória, registrou 6% das intenções de voto em pesquisa Ibope publicada em 13 de outubro. Coronel Nylton (Novo), que também quer ser prefeito da Capital, tem 1%. Quem se sai melhor é Pazolini, que acrescentou "Delegado" no nome de urna, e alcança 10%.
Na corrida pela Prefeitura de Vila Velha, Coronel Wagner (PL) tem 2%, também de acordo com pesquisa Ibope publicada em 15 de outubro.
Para o Instituto Sou da Paz, o cenário de mais candidatos militares e também o aumento da presença deles em ministérios e outros cargos do governo federal causa, em algumas frentes, apreensão. "O aparato armado do Estado nunca pode se deixar conduzir por ideologias ou por afinidades políticas", sustentam os representantes da entidade.
Entre as preocupações estão a politização das forças policiais, movimentos reivindicatórios e grevistas na categoria, que são proibidos por lei e, também, que militares usem sua atuação profissional para concretizar seus projetos políticos.
"Muitos dos candidatos policiais vitoriosos ficaram conhecidos do público a partir de ocorrências de grande repercussão, em que o policial envolvido obteve grande projeção na mídia. A possibilidade de que policiais possam orientar seu trabalho de policiamento com vistas a essa exposição gera preocupações e há indícios de que isso já esteja ocorrendo", registra o artigo do instituto publicado no anuário.
Pela legislação atual, policiais ou bombeiros militares, por exemplo, que têm mais de 10 anos de carreira não precisam renunciar ao posto militar para disputar eleições, apenas caso sejam eleitos. Eles também não precisam respeitar prazos de filiação partidária, podendo se filiar a qualquer partido mesmo durante ou após as convenções partidárias e seus nomes não precisam ser aprovados pelo colegiado partidário nas convenções. Para o Instituto Sou da Paz, é importante reformular as regras.
Seria preciso, para os especialistas, estabelecer quarentenas para que profissionais de carreiras de Estado, aquelas que não existem fora do setor público, possam se candidatar. "Com vistas à proteção destas atividades essenciais e técnicas da burocracia, que não podem ser contaminadas pela política partidária", pontuam.
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