Uma festa com rodeio e shows de sertanejos famosos está na mira do Ministério Público do Espírito Santo (MPES). Promovida pela Prefeitura de Afonso Cláudio, na Região Serrana do Estado, a 30ª Exposição Agropecuária do município foi realizada com pelo menos R$ 1,4 milhão em despesas, conforme contratos e licitações publicados no Diário Oficial e verificados no site da cidade até a última quarta-feira (18). O evento começou na quinta (19) e foi até domingo (22).
A festa virou alvo de embate judicial devido à contratação direta de uma empresa para organizar o rodeio, sem a realização de licitação, o que levou o MPES a recomendar o cancelamento do contrato.
As despesas estimadas eram quase o dobro do atual valor. Mas o edital que previa contratação de Organização da Sociedade Civil para realizar o evento, montar as estruturas e os palcos, instalar banheiros químicos, entre outros serviços, cujo valor era de R$ 1,110 milhão, foi revogado pela prefeitura, que assumiu todas as atividades previstas no edital de chamamento público milionário.
Outro contrato, este para fornecimento de alimentação, bufê e outras demandas do evento, no valor de R$ 233.852,67, também foi revogado pelo município, após ser alvo de questionamento no âmbito administrativo.
Com isso, as principais despesas confirmadas serão com shows (R$ 915 mil), organização do rodeio (R$ 350 mil) e prestação de serviços diversos, como a organização de concursos e exposição de animais (R$ 112,8 mil). Há ainda um contrato no valor de R$ 16,5 mil para administração da venda de camarotes e um edital, cujo resultado não consta no site da prefeitura, no valor de R$ 30 mil para premiar os campeões do "Torneio do Laço 2023".
A maior fatia dos gastos vai ser para pagar contratos firmados sem licitação com artistas, bandas e duplas sertanejas nacionais e locais: R$ 915 mil no total. Somente com um dos shows, da dupla Matheus e Kauan, a prefeitura vai gastar R$ 350 mil. Há outros oito contratos relacionados a shows firmados pelo município, com valores que vão de R$ 4 mil a R$ 220 mil. Confira os detalhes no infográfico abaixo.
O segundo maior gasto confirmado até o momento é para bancar a organização do rodeio, que começa na sexta-feira (20) e vai custar R$ 350 mil. A Cia Brasil de Rodeios Ltda, com sede em Guiricema, Minas Gerais, foi a empresa escolhida pela própria prefeitura para prestar esse serviço, por meio de um contrato por inexigibilidade, ou seja, sem que houvesse uma disputa licitatória.
O Executivo municipal fundamentou a escolha em dispositivo da Lei de Licitações (Lei 8.666/93), que prevê contratação sem licitação de profissional consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. O fundamento é o mesmo utilizado nas contratações dos artistas que vão se apresentar no evento.
Por conta da ausência de licitação, uma das empresas interessadas, a Produções TR ME levou o assunto à Justiça, por meio de um mandado de segurança, mas a prefeitura obteve decisão favorável em primeira instância e no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), mantendo-se assim a contratação sem licitação.
A advogada da Produções TR ME, Natalia Ohnesorge, alega que a contratada é uma empresa comum e argumenta que, no ano passado, a prefeitura fez um pregão eletrônico para escolher a organizadora do rodeio, que é a mesma escolhida este ano. "Não houve justificativa para a inexigibilidade. Não houve o devido processo licitatório", sustenta.
A advogada acrescenta que a Federação Capixaba de Rodeio (Fecar) emitiu certidão em que declara que a empresa contratada "não presta qualquer tipo de serviço em regime de exclusividade, nem mesmo singular. Trata-se de prestador de serviços comuns em que múltiplas empresas do mesmo ramo realizam o mesmo objeto de forma similar". Além disso, a empresa não é filiada à entidade.
O MPES, por meio da Promotoria de Justiça de Afonso Cláudio, deu parecer favorável ao pedido da Produções TR ME, empresa autora do mandado de segurança, contra a contração sem licitação da organizadora do rodeio. O Ministério Público pediu ao juiz do município para rever a decisão contrária à suspensão do rodeio, por entender que a forma escolhida pela prefeitura para a contratação não foi adequada.
"Não basta dizer que a empresa é singular porque realizou evento anterior no mesmo local ou porque possui capacidade técnica para realizar o evento", ressaltou o MPES, no parecer.
Para o MPES, havia condições de a prefeitura realizar licitação para contratar a organizadora do rodeio. "Existiu viabilidade de competição, pois a empresa contratada não possui nenhum elemento especial que indique a impossibilidade de participação de outras empresas em procedimento licitatório regular", diz o parecer.
Além disso, a Promotoria de Justiça de Afonso Cláudio informou, em nota, que fez uma notificação recomendatória enviada diretamente ao prefeito, Luciano Roncetti Pimenta (União), por e-mail, no último dia 11, nos seguintes termos: "Que promova o cancelamento do contrato” com a empresa, efetivado por meio do “procedimento de inexigibilidade 19046/2023, por frustrar a competitividade do procedimento concorrencial, em desatenção à obrigatoriedade de licitar”.
Na nota, o MPES informou também que estão sendo analisados documentos e pessoas vêm sendo ouvidas em relação ao caso. "Importante destacar que nem todos os documentos requisitados foram apresentados ao Ministério Público e nem todos os esclarecimentos foram feitos por parte da administração municipal", destacou o Ministério Público.
Os contratos e publicações relacionados ao evento estão em sua maioria disponíveis no site da prefeitura, mas não são encontrados facilmente por qualquer cidadão, já que são vários e se encontram dispersos, em abas diferentes dentro da página oficial. Em alguns casos, o andamento do processo licitatório não está atualizado no campo em que foi publicado.
Uma dessas situações é em relação ao edital de chamamento público 002/2023, que previa a contratação de empresa para realizar a festa e tinha valor de R$ 1,110 milhão. Até quarta-feira (18), a suspensão do edital não constava na publicação relacionada a ele no site da prefeitura. O edital tinha previsão de apresentação das propostas entre 25 de agosto e 25 de setembro.
Demandada a respeito da vencedora do certame, a prefeitura informou que o edital foi revogado e não houve contratação, conforme publicação realizada no Diário Oficial dos Municípios no dia 6 de setembro.
O mesmo ato também revogou o edital de chamamento público 001/2023, mas um novo edital com esse mesmo número voltou a ser publicado em 3 de outubro e não consta no andamento disponível no site da prefeitura nenhuma informação sobre revogação. Esse edital prevê o pagamento de R$ 30 mil em premiação para o "Torneio do Laço 2023". A prefeitura não respondeu ao questionamento da reportagem sobre a manutenção ou não desse edital específico.
Sobre a realização dos serviços previstos na contratação milionária e no edital do pregão eletrônico 53/2023, também revogado, a assessoria informou quanto ao primeiro que "a prefeitura está realizando todos os serviços".
Questionada, então, se foi necessária a contratação de servidores extras para a realização dos serviços, a prefeitura não deu retorno na noite desta quarta-feira. O edital revogado que tratava desses serviços previa um gasto de R$ 1,1 milhão.
Também questionada sobre o custo total do evento e a respeito de todos os contratos firmados, a prefeitura respondeu que "o custo total do evento será apurado com certeza após o evento, visto que ainda nesta data existem contratos sendo firmados". Indagada, então, sobre quais contratos estavam pendentes, não respondeu.
A prefeitura informou, ainda, que todo o evento será custeado com recursos próprios, advindos de superávit.
Sobre as contratações sem licitação, alegou que "todo o procedimento administrativo ocorreu dentro da legalidade, inclusive em consonância com pareceres do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo. No questionamento judicial, houve no dia 16/10 decisão judicial reconhecendo a legalidade dos atos praticados. Também saiu ainda há pouco (18/10) o resultado da decisão do Agravo de Instrumento, onde o Tribunal de Justiça do Espírito Santo entendeu que está tudo dentro da legalidade e indeferiu o pedido".
A respeito dos benefícios que o município terá com um evento tão custoso, a prefeitura afirmou que "está cumprindo sua obrigação constitucional de promover a cultura e o lazer aos seus munícipes".
"Atualmente, as hospedagens do município encontram-se com quase 100% de ocupação, o comércio varejista tanto de roupas/calçados/alimentos e outros tem repercutido de forma positiva à grande movimentação financeira na cidade. Todo o lucro da festa será revertido para três instituições do município, sendo elas o Hospital São Vicente de Paulo, a Apae e o Projeto Resgate", acrescentou a prefeitura, em nota.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta