O Ministério Público do Espírito Santo (MPES), por meio da Promotoria de Água Doce do Norte, abriu procedimento para investigar a revogação de um artigo da Lei Orgânica – uma espécie de Constituição municipal – da cidade que determinava o afastamento do prefeito por 180 dias, caso ele se tornasse réu no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).
A regra foi abolida pelos vereadores na sessão do último dia 29 de janeiro, por seis votos a três, atendendo a um pedido do prefeito Abraão Lincon (PSD). Dos nove vereadores, votaram contra apenas Juninho Cabral (PP), Fernando de Oliveira (PP) e João Neto (PSB).
Assim, se o prefeito for denunciado e a denúncia for recebida pelo Tribunal de Justiça, ele não deve ser afastado do cargo automaticamente.
Além disso, a Câmara também revogou outra norma que implicava que apenas procuradores concursados poderiam assumir a Procuradoria-Geral do Município.
Favorável ao projeto aprovado, o presidente da Câmara de Água Doce do Norte, Hélio Pereira (PSD), disse que as mudanças foram uma forma de "modernizar a legislação do município".
O consultor jurídico de Hélio, Gabriel Verly – que também é secretário municipal de Indústria, Comércio e Turismo –, argumentou que a previsão de afastamento do prefeito é inconstitucional e que o regramento da cidade estava desatualizado.
"A aceitação de denúncia por parte do Tribunal de Justiça não é presunção de culpabilidade por parte do prefeito. Cabe à Justiça Estadual dizer, ao analisar o caso, se o prefeito deve ser afastado e não ele ser automaticamente afastado uma vez que se torne réu. Em casos em que um chefe do Executivo deixou o cargo ao ser julgado, como o do governador afastado Wilson Witzel, por exemplo, foi a Justiça que determinou", argumenta Verly.
De fato, o tema é controverso entre juristas. Há uma jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) considerando um artigo semelhante da cidade de Rio Manso (MG) inconstitucional.
Segundo a decisão, de 2011, as questões pertinentes a crimes de responsabilidade e às infrações cometidas por prefeitos são de competência da União. Como o tema era recorrente em outras cidades brasileiras, o Supremo Tribunal Federal (STF) adotou a súmula vinculante 46, definindo, assim como o TJMG, que cabe à União legislar sobre crimes de responsabilidade de prefeitos. Desta forma, somente o Congresso Nacional poderia propor mudanças sobre o tema e não os vereadores.
"Entendo que a Câmara fez bem ao revogar esta norma, havia um vício de iniciativa, que são problemas comuns na legislação dos municípios. A regra anterior era inconstitucional, não poderia a Lei Orgânica dispor sobre o tema”, analisa o advogado e mestre em Direito João Roberto Dal Col.
O professor de Direito e advogado constitucionalista Caleb Salomão Pereira entende que, apesar de a Constituição Federal prever que o presidente da República seja afastado caso o STF acate uma denúncia contra ele, o mesmo não deve valer em âmbito municipal.
"A Constituição Federal prevê o princípio da simetria nas leis orgânicas municipais, mas nem todos os casos são passíveis de serem replicados. É o que no Direito chamamos de simetria imperfeita, quando uma norma constitucional é aplicada de maneira distorcida", afirma o professor.
Já o doutor em Direito Raphael Abad diz que a questão é complexa e há "conflito entre princípios". Ele explica que o STF, ao determinar que a definição de crimes de responsabilidade é de competência da União, aponta que compete aos municípios replicarem o mesmo entendimento adotado para afastar presidentes.
"Ao dizer que não cabe ao município mudar o que já está definido, entendo que o STF diz que a Lei Orgânica deve seguir exatamente o mesmo princípio, ou seja, não deve inovar. Acredito que a revogação da regra é um ato inconstitucional. A regra anterior estava de acordo, em simetria, com a Constituição. Deveria ter sido mantida”, defende.
O advogado constitucionalista Cláudio Colnago aponta que a regra anterior não era inconstitucional, assim como também não desobedece a Constituição a revogação da norma pela Câmara. Apesar disso, ele entende que a retirada do artigo deixa a legislação do município pior.
"A Câmara tem competência para julgar o prefeito, assim como estabelecer alguns princípios. Não vejo inconstitucionalidade na forma como estava descrito. A Constituição determina que cabe à Lei Orgânica dispor sobre o mandato do prefeito. Agora, é uma decisão política do prefeito e dos vereadores de discutir essa norma. Se ela foi votada e optaram por revogar, não há irregularidade nenhuma. Embora eu acredite que a legislação fica pior sem essa regra", afirma.
A reportagem procurou a Prefeitura de Água Doce do Norte para se manifestar sobre o processo de investigação aberto pelo Ministério Público. Até a publicação deste texto, não houve retorno.
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