Nos últimos 30 dias, prefeitos de ao menos 11 dos 78 municípios capixabas nomearam parentes – geralmente as esposas – em cargos comissionados nas prefeituras. Em duas dessas cidades – São Gabriel da Palha e Itapemirim – o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) acendeu o alerta. A prática de ocupar cargos da administração pública com parentes próximos não é uma novidade de 2021, há dezenas de casos parecidos no Estado. Brechas na legislação, a dificuldade de os órgãos apurarem tantas denúncias e até aspectos histórico-culturais ajudam a explicar porque a lotação de familiares de gestores em órgãos públicos, muitas vezes, acaba sem punição e, logo, vira rotina.
Quando essas práticas se tornam públicas, alguns prefeitos, por pressão popular, até exoneram seus familiares – como já aconteceu com o prefeito de São Gabriel da Palha, um dos 11 casos que vieram à tona em 2021 – mas poucas vezes são punidos pela Justiça.
Entre os casos em que houve condenação está o do atual prefeito da Serra, Sergio Vidigal (PDT), sentenciado em 2016 por empregar a irmã em cargo de assessora especial, entre 2009 e 2012.
Ele recorre da decisão em 2ª instância. Na época, a defesa do pedetista alegou que o cargo de assessora especial havia sido elevado ao de secretário e era, portanto, um cargo político, situação que conta com jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) para permitir a nomeação de parentes.
Para o professor e advogado especialista em Direito Público Eduardo Sarlo, essa brecha, citada pela defesa de Vidigal, é um dos fatores que mais contribui para a impunidade. Ele explica que a Súmula Vinculante 13, do STF, desde 2008 proíbe a nomeação de parentes para cargos públicos, com a exceção das funções estritamente políticas – como secretarias e ministérios, por exemplo.
No entanto, a norma é clara ao permitir apenas casos em que o familiar nomeado tenha qualificação técnica necessária para o cargo. O que era para ser uma exceção à regra, para garantir situações atípicas em que um parente do prefeito fosse, realmente, a pessoa mais indicada para a função, acabou se tornando uma carta na manga dos gestores para nomear familiares.
Juristas apontam que, mesmo com esse entendimento, cabe ao juiz analisar caso a caso, e, mesmo que o parente empregado no poder público tenha qualificação, o caso pode ser considerado nepotismo.
"Enquanto a súmula estiver vigente ela vai continuar atrapalhando muito a punição a quem pratica o nepotismo. Esse é o argumento recorrente de quem é pego empregando um parente. Todo período pós-eleição esses casos voltam a ocorrer em sequência. Dar um cargo público por força do parentesco é falta de cuidado com o dinheiro público", argumenta Eduardo Sarlo, que dá aulas na Escola do Serviço Público do Espírito Santo (Esesp).
Segundo ele, outro fator que impede uma maior celeridade para punir casos de nomeação de parentes em cargos públicos é a carência de servidores nos órgãos de controle. Ele aponta, ainda, que a natureza da prática, tratada normalmente em ambiente privado, sem testemunhas ou provas documentais que possam indicar a prática de crime, também dificulta as condenações.
"Após serem denunciadas, as autoridades responsáveis (o MPES ou a Polícia Civil) vão investigar os prefeitos, tentar juntar elementos que comprovem as irregularidades e entrar com uma ação na Justiça. Há, depois disso, uma série de recursos que os acusados podem usar para prolongar o julgamento. O número de processos no Judiciário é imenso. Faltam servidores para dar celeridade em todas essas etapas, desde a investigação até o julgamento", analisa.
Na última semana, um dos casos que chamaram a atenção e estão sob investigação do MPES é o da Prefeitura de Itapemirim. Segundo levantamento do colunista Vitor Vogas, ao menos 18 pessoas da família do prefeito da cidade, Thiago Peçanha (Republicanos), foram nomeadas por ele em cargos públicos. O MP instaurou procedimento para apurar a denúncia.
A ONG Transparência Capixaba também apresentou, paralelamente, uma representação ao MPES para que o caso de Itapemirim seja investigado. A medida é, segundo o secretário-geral da ONG, Rodrigo Rossoni, uma forma de pressionar para que não haja esquecimento.
"É função do gestor público localizar as pessoas mais capazes do município ou até de cidades vizinhas que possam administrar a cidade. É difícil a gente acreditar que um prefeito não tenha encontrado profissionais técnicos na cidade e tenha preferido colocar 18 pessoas de sua família na prefeitura. Acredito que a impunidade é o que incentiva que casos assim continuem acontecendo", afirma.
Além do caso de Itapemirim, o MPES também examinou a contratação da esposa do prefeito de São Gabriel da Palha, Tiago Rocha (PSL), para chefiar a Secretaria de Assistência Social do município. Marcella Ferreira Rossoni não tinha qualificação suficiente para o cargo, no entendimento do Ministério Público. Ao MP, ela apresentou comprovantes de realização de três cursos de carga horária de 120 horas datados do mesmo dia (13 de janeiro deste ano) como qualificação técnica, o que, para o órgão, é um indício de falsidade ideológica.
O órgão ministerial recomendou a exoneração, o que foi feito pelo prefeito. Também há familiares de prefeitos em cargos públicos nas cidades de Fundão, Brejetuba, Ecoporanga, Ibiraçu, Montanha, Santa Teresa, Afonso Cláudio, Pancas e Jaguaré.
As raízes do nepotismo praticado no país são profundas e remetem ainda à época em que o Brasil era colônia de Portugal. Naquela época, como muitos cargos públicos eram hereditários, passavam de pai para filho, tornou-se comum que autoridades políticas nomeassem seus parentes.
"Com o passar do tempo, o sistema político foi evoluindo. Hoje está mais que comprovado que um mandato de qualidade passa por uma administração pública impessoal, em que se consiga trazer pessoas talentosas. É uma forma de dividir o poder", avalia Sarlo.
As autoridades também têm se preparado e descoberto novas técnicas para conseguir comprovar o nepotismo praticado no poder público. Um dos casos mais comuns é o nepotismo cruzado, quando dois agentes políticos agem em acordo para que um nomeie o familiar do outro. Ao nomear um parente em outro município ou outra esfera de Poder, o gestor dificulta a comprovação de que houve uma irregularidade.
Há investigações em que grampos telefônicos são feitos, computadores e celulares são apreendidos e, por meio do rastreamento desses aparelhos, é possível identificar a realização desses acordos.
Procurado pela reportagem, o Ministério Público informou que tem conhecimento das diversas denúncias de gestores que nomearam parentes para o exercício de cargos comissionados. O órgão não cita a quantidade de denúncias já apuradas, mas destaca que todos os casos estão sendo acompanhados pelos promotores de cada comarca para a instauração de procedimentos.
Entre os itens analisados, cita o MP, são estudadas as peculiaridades de cada caso “levando em consideração, entre outros, os critérios da razoabilidade, a motivação da nomeação, a qualificação técnica do nomeado, o valor da remuneração, tudo com o objetivo de identificar a consecução do interesse público e a observância dos princípios da administração pública”.
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