Os impactos da pandemia do novo coronavírus, já observados hoje, deverão ganhar contornos permanentes nos sistemas políticos ao redor do mundo. O avanço da Covid-19 tem feito diversos países rever suas políticas sociais para proteger os mais vulneráveis, principais vítimas da doença, e as medidas deverão se tornar contínuas ao longo do tempo.
Especialistas avaliam que a nova configuração global mudará o papel dos Estados, que serão obrigados a intervir e a investir mais nas áreas de saúde e assistência social. Ao mesmo tempo, acreditam que os discursos autoritários, observados em líderes mundiais neste momento, terão que ficar de lado no cenário pós-pandemia, que exigirá uma atuação conjunta dos Estados para que se reestruturem.
Entre os principais reflexos que o mundo experimentará nos próximos anos está a perda de força da doutrina neoliberal, que pautou sistemas políticos e econômicos no século XX. O cientista político da Universidade Presbiteriana Mackenzie Rogério Baptistini acredita que o mundo verá um ressurgimento da centralidade do poder no Estado.
A estrutura deficiente para enfrentar o novo coronavírus, com falta de leitos, equipamentos e profissionais, têm exposto as fraquezas dos sistemas de saúde. Esta realidade, segundo o cientista político e professor da PUC-Rio Ricardo Ismael impõe um redirecionamento das políticas públicas de todos os países, com mais investimentos na área de saúde e assistência social.
"Vamos presenciar mudanças no sistema de saúde, principalmente em países que nunca deram importância ao sistema público. A pandemia vai fazer com que eles revejam esse sistema e políticas de saúde ganhem força. No Brasil, acredito que o SUS sai fortalecido, o que força o governo a manter os recursos que está direcionando agora para a saúde por um longo período. A pandemia mostra a necessidade de se apoiar a ciência, a investir em pesquisa, em ter autonomia científica", disse.
O Estado também deverá ficar mais atuante em outros aspectos. Para o cientista político Ricardo Ismael, a população deverá experimentar uma sociedade "menos livre". De acordo com ele, a realidade obrigará um maior controle da circulação de pessoas, principalmente em um período pós-pandemia. Este controle, porém, caso não seja feito de forma equilibrada, poderá ser usado como uma oportunidade de endurecer a vigilância sobre a população.
"As sociedades vão ter que ser acompanhadas, de alguma maneira, após a pandemia. O avanço do coronavírus nos mostrou a necessidade de levantar barreiras sanitárias, que dificilmente serão relaxadas. Essa livre circulação de pessoas, que o mundo vinha experimentando e que é uma das marcas da globalização, não existirá mais", explicou.
"Os Estados serão obrigados a controlar deslocamentos de pessoas entre países. O desafio é que encontrar um equilíbrio para realizar esse controle e ele não resultar em uma invasão de privacidade. Temo que isso passe a ser usado para outros fins, como já vimos nos Estados Unidos com o anúncio de restrição de imigrantes adotado pelo presidente Donald Trump", alertou.
Alguns países asiáticos como Coreia do Sul, Israel e Irã já têm usado tecnologia de celulares como ferramentas de vigilância na tentativa de controlar a disseminação do vírus. Com isso, telefones de pacientes infectados com o vírus são rastreados, assim como de pessoas próximas a elas. O monitoramento com uso de dados de geolocalização é polêmico no Brasil.
Com a justificativa de que os riscos à privacidade precisam ser mais bem avaliados, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) determinou que o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações interrompesse a tratativa com operadoras de telefonia para uso dessas informações pelo governo federal.
Com um momento de tantas incertezas sobre o futuro e o papel das autoridades num período conturbado como este, o autoritarismo se fortalece e se torna um risco para as sociedades no pós-pandemia.
Usando do medo da população diante de um momento de insegurança, líderes autoritários têm encontrado na crise do novo coronavírus um cenário propício para "oferecer uma espécie de porto seguro", conforme descrito pelo cientista político Ricardo Ismael. "Discursos nacionalistas e voltados para si mesmos têm sido comuns entre os países."
Para a cientista política e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ariane Roder, a pandemia tem demonstrado no campo da política internacional um atrito muito evidente de ações cooperativas e conflitivas entre os Estados.
"Alguns governos têm usado a pandemia e as suas consequências para criticar e, até mesmo, demonizar a perspectiva globalista e cooperativa nas relações internacionais. A competição por insumos essenciais tem reforçado características de cunho nacionalista de algumas lideranças globais como dos Estados Unidos, Reino Unido e do próprio Brasil, colocando em dúvida o papel a ser desempenhado pela organizações internacionais como a própria OMS [Organização Mundial da Saúde]", destacou.
A escalada de regimes autoritários e nacionalistas em governos no mundo pós-pandemia, contudo, não pode ter espaço no futuro breve, avaliam especialistas. Para eles, por mais distante que esteja hoje um discurso unificado de enfrentamento da pandemia, ele se mostrará necessário e evidenciado pela ciência.
O cientista político Fernando Pignaton reforça a opinião de Roder. Para ele, por mais fortes que os regimes autoritários se mostrem agora, eles não terão espaço em um mundo pós-pandemia, que exigirá uma atuação cada vez mais conjunta de países.
"Este tipo de governo nacionalista e autoritário não terá espaço em um mundo pós-pandemia, que sairá fortalecido pela atuação conjunta de países. Crises como estas revalorizam entidades internacionais, porque não existe um país modelo, mas uma atuação global pautada pela Organização Mundial da Saúde. Os governos do mundo que se recusarem a seguir um padrão vão falhar", pontuou.
A organização geopolítica também será impactada. Segundo especialistas, a China se projeta como um grande jogador global, com queda da hegemonia dos Estados Unidos nas decisões políticas. "A centralidade norte-americana de fato já ruiu, ficará cada vez mais evidente a perda do monopólio dos Estados Unidos na liderança mundial. Vamos ver um crescimento vertiginoso da China na tomada de decisões globais", explicou o cientista político Ricardo Ismael.
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