Ainda aguardando a análise do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a proposta de socorro a Estados e municípios já aprovada pelo Congresso Nacional tem como contrapartida o congelamento dos salários de servidores de várias categorias até dezembro de 2021. Contudo, há uma divergência entre especialistas sobre a constitucionalidade da proibição de conceder reajustes, abrir novas vagas ou realizar concursos em todos os Poderes do serviço público.
A contrapartida foi um pedido do governo federal, atendido pelo Senado e chancelado pela Câmara, na proposta do auxílio financeiro a ser pago pela União. A medida, se sancionada, vale para todos os servidores, em todos os Poderes, nos âmbitos federal, estadual e municipal. Inicialmente, no texto aprovado pelo Senado, apenas servidores das áreas de saúde e segurança pública não seriam incluídos nas restrições.
No entanto, a Câmara acabou livrando mais categorias do congelamento, diminuindo a projeção de economia. De volta ao Senado, o relator da proposta manteve parcialmente as novas classes inseridas pelos deputados.
A Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados elaborou uma nota técnica apontando que pode haver questionamentos na Justiça quanto à possibilidade de a União legislar sobre matérias inerentes à competência legislativa e administrativa de outros Poderes.
A Gazeta consultou especialistas sobre o tema. Há quem defenda que é de competência exclusiva de cada ente propor leis que impactem em suas questões administrativas, ou seja, isso não pode ser imposto por outro Poder - e que a revisão salarial anual dos servidores é um direito constitucional. Há também quem pontue que a lei, se sancionada, terá caráter nacional, deverá ser seguida por todos os Poderes.
"Poderá ser questionada a possibilidade de norma infraconstitucional impor restrição ao exercício de competência legislativa e administrativa de outros entes. De forma que a emenda constitucional é o instrumento mais indicado para determinar o congelamento da remuneração de todos os agentes públicos das esferas de governo atingidas pela calamidade reconhecida pelo Congresso", diz a nota da Câmara.
A legalidade da medida também é alvo de questionamento dentro da cúpula dos Poderes no Espírito Santo. Em uma reunião na última semana, o governador Renato Casagrande (PSB); o presidente da Assembleia Legislativa, Erick Musso (Republicanos); o presidente do Tribunal de Justiça, Ronaldo Gonçalves de Sousa; a procuradora-geral de Justiça, Luciana Andrade; o presidente do Tribunal de Contas, Rodrigo Chamoun; e o defensor público-geral, Gilmar Batista discutiram os cortes de gastos necessários.
Segundo o colunista Vitor Vogas, a reunião teve pontos de tensão entre os representantes, que não chegaram a um consenso quanto à legalidade da obrigatoriedade do congelamento de salários.
De acordo com a especialista em Direito Administrativo e consultora da Cheim Jorge Abelha Rodrigues Advogados Associados Mariana Fernandes Beliqui, o texto prevê a extensão das restrições para todos os Poderes. Contudo, a proposta tem despertado dúvidas quanto a sua constitucionalidade. Além de poder ser questionada pelo princípio da separação dos Poderes, como apontam os técnicos da Câmara dos Deputados, outro argumento pode ser usado para acirrar a discussão judicialmente.
"Na prática, o congelamento dos salários poderá consubstanciar na redução do valor real da remuneração dos servidores públicos. Contudo, a revisão anual de salários, sempre na mesma data e sem distinção de índice, é um direito assegurado na Constituição", explica.
Caso a medida seja sancionada e, hipoteticamente, seja suspensa pela Justiça, os repasses da União para Estados e municípios poderiam, a depender da decisão, ser parcialmente ou totalmente suspensos. O bloqueio do recurso, já aguardado por governadores e prefeitos para tratar das perdas de arrecadação por conta da pandemia de coronavírus, não é descartado.
"A repercussão dessas hipotéticas decisões judiciais é desconhecida, sendo, a princípio, temerário afirmar sobre eventual interrupção na entrega dos recursos da União ou na efetivação de outras medidas previstas no Programa Federativo de Enfrentamento ao novo Coronavírus, principalmente no atual momento de incerteza", analisa Beliqui.
O professor e mestre em Direito Raphael Abad destaca que questões constitucionais são analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas juízes federais, de primeira instância, também podem tomar decisões liminares (provisórias), o que contribui para a insegurança jurídica sobre o tema.
No entanto, ele explica que a proposta aprovada no Congresso é de uma lei complementar à Lei de Responsabilidade Fiscal, que é nacional, ou seja, atinge os três Poderes.
"Uma lei nacional é diferente de uma lei federal. A nacional vale para todo o território, em todos os âmbitos, já a federal, vale apenas no que diz respeito às competências da União. É claro que é inerente a qualquer proposta ser questionada, mas, a meu ver, por ser uma lei nacional, caso sancionada, ela fica mais difícil de ser tecnicamente suspensa pela Justiça", argumenta.
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