Ainda no início de abril, quando os efeitos da pandemia do novo coronavírus se tornavam mais nítidos nas grandes capitais brasileiras, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as medidas adotadas pelo governo federal para o enfrentamento da Covid-19 não afastavam a "competência concorrente" de Estados e municípios de tomar providências na crise.
Ou seja, a Corte entendeu que os Executivos estaduais e municipais podem definir ações restritivas em seus territórios, como o fechamento do comércio e a restrição de locomoção por portos e rodovias. Por sua vez, o Executivo federal também pode tomar medidas para conter a pandemia, mas em casos de abrangência nacional.
O contexto da decisão era o início das determinações para isolamento social, quarentena e fechamento de estabelecimentos comerciais. Por um lado, o governo federal defendia o isolamento vertical (apenas idosos e demais pessoas do grupo de risco ficariam em casa, mesmo que morassem com pessoas que poderiam contaminá-las ao sair e voltar) e criou uma lista generosa de estabelecimentos considerados essenciais, que poderiam abrir durante a quarentena. Já governadores, observando uma possível superlotação de leitos nos hospitais, defendiam uma lista mais restrita.
O STF entendeu que o governo federal poderia definir algumas categorias como essenciais, mas Estados e municípios também tinham autonomia para adotar as medidas de acordo com a realidade de cada localidade. O artigo 23 da Constituição Federal determina que os cuidados da Saúde são competências comuns da União, dos Estados e dos municípios.
No entanto, a decisão tem sido distorcida desde então por apoiadores de Bolsonaro, com ampla repercussão, sobretudo, nas redes sociais. O próprio presidente já escreveu em sua conta no Twitter atribuindo ao STF a determinação de deixar "as ações de combate à pandemia sob total responsabilidade dos governadores e dos prefeitos".
Uma ata assinada em junho por auxiliares do ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, reforça esse entendimento ao sugerir que o ministério "não tem a responsabilidade de fornecer respiradores e EPIs (equipamentos para proteção individual)". O documento, que definiu a orientação de compras da pasta, foi registrado após Estados e municípios reclamarem sobre atrasos nas entregas de testes de diagnóstico, leitos de UTI, respiradores e outros materiais.
Na última semana, a postura de Bolsonaro diante da pandemia no Brasil foi levada ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, por meio de uma queixa que acusa o presidente de genocídio e crimes contra a humanidade. A ação foi protocolada pela Rede Sindical Brasileira Unisaúde, que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil. No documento, Bolsonaro é acusado de "falhas graves e mortais" no enfrentamento à Covid-19, o que fez com que o país atingisse mais de 80 mil mortes, segundo a queixa.
A ação despertou a reação de bolsonaristas, que alegam que o presidente não pode ser responsabilizado por qualquer tipo de crime e que a atuação no combate ao novo coronavírus está a cargo de governadores e prefeitos.
Especialistas acreditam que há poucas chances de a queixa ser admitida pela Corte pela falta de argumentos que comprovem atos classificados como genocídio e crimes contra a humanidade e pela subsidiariedade do Tribunal Penal Internacional, que só atua em casos em que houve negligência ou omissão por parte do julgamento de tribunais nacionais.
Apesar disso, afirmam que o chefe do Executivo possui responsabilidades no combate à pandemia e não pode delegar a atuação no enfrentamento apenas a Estados e municípios.
O governo federal tanto tem um papel importante nesta crise que é o responsável por destinar recursos aos demais entes. Essas liberações, contudo, têm sido feitas de forma desigual e em um valor inferior ao que deveria, de acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU). Entre os quase R$ 10 bilhões previstos para os Estados, em quatro meses de pandemia, nem metade foi empenhado (o primeiro estágio da execução), apenas R$ 4 bilhões. No caso dos municípios, dos R$ 16,8 bilhões previstos, R$ 5,8 bilhões foram empenhados.
Para especialistas, o papel da União na condução de uma crise pandêmica, além da distribuição de recursos, é de coordenar as ações pelo território e definir parâmetros de segurança que integrem as medidas adotadas em cada Estado. Outro ponto em que o Planalto tem mais condições para atuar é na importação, por exemplo, de medicamentos e respiradores, já que a estrutura diplomática, que poderia ajudar nesta negociação, fica dentro da esfera federal.
Governadores brasileiros, incluindo o chefe do Executivo estadual capixaba, Renato Casagrande (PSB), têm criticado o presidente pela ausência de coordenação do governo federal neste período. O professor de Direito da FDV e doutor em Direito Constitucional Américo Bedê explica que a União, por ser um Poder central, tem como função tentar encontrar soluções para o problema de todos. No entanto, pela autonomia entre os entes, é natural que haja divergências entre eles.
"Essa divergência é constitucional. Essa autonomia significa essa possibilidade de se seguir uma política contrária. Agora, é claro que o ideal é que os entes atuassem de maneira integrada, com menos políticas, menos questões ideológicas e mais parcerias em suas atuações", pontua.
O advogado e cientista político Marcelo Issa acredita que há omissão do governo federal por conta da ausência de parâmetros claros e científicos no combate à pandemia. Por isso, para ele, é que os governos estaduais têm recorrido aos seus próprios especialistas, nas universidades de cada Estado, para embasar suas medidas.
"A constituição de um comitê entre presidente e governadores seria uma providência básica e primária em qualquer cenário de crise, ainda mais uma pandemia mundial. A decisão do STF não o impediu de fazer isso. Esse discurso é uma distorção e uma tentativa de afastar uma responsabilidade que ele tinha de coordenar esse trabalho e estabelecer essas diretrizes. Temos visto governadores manifestando a insatisfação com o ministério, ao definir esses parâmetros das curvas de contágio, quando é hora de relaxar, quando é hora de restringir, quais medidas adotar. Isso não houve, não tiveram esse respaldo no Ministério da Saúde", afirma.
Governo federal
Aos Estados e municípios cabem adotar medidas que têm caráter local, como funcionamento de serviços e estabelecimentos comerciais e medidas de isolamento. Neste sentido, a recomendação é uma cooperação entre Estados e municípios. No entanto, havendo uma realidade de um município muito destoante do Estado como um todo, o governo local pode adotar providências diferenciadas.
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