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'Ordem de matar era da Presidência', diz Cláudio Guerra

"Ordem de matar era da Presidência", diz Cláudio Guerra

Pastor e ex-delegado do Dops é personagem de documentário que está em cartaz em Vitória

Publicado em 15 de março de 2019 às 22:53

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Aos 78 anos, Cláudio Guerra é, hoje, um pastor da Assembleia de Deus que dedica a vida à Bíblia e a fazer o bem, como diz. Antes de descobrir a fé e tornar-se um “homem novo”, a partir de 2005, era o velho delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) que matava e incinerava inimigos da ditadura militar.

É o personagem central do documentário "Pastor Cláudio", de Beth Formaggini. No filme, que estreou nesta semana e está em cartaz no Cine Metrópolis, o ex-delegado narra ter assassinado pelo menos nove inimigos dos militares e incinerado o corpo de 12 pessoas, nos anos 1970.

As revelações de Cláudio Guerra, que trabalhou como agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), não são novas. Ele já havia falado à Comissão Nacional da Verdade (CNV) e contado a própria história no livro "Memórias de uma Guerra Suja'. No documentário, é apresentado às fotos dos assassinatos e vai falando com absoluta naturalidade: "Eu saquei e atirei na cabeça dele".

Hoje, diz-se arrependido, mas tem seus argumentos para ter feito o que fez. "Eu e outros que fomos requisitados para combater éramos soldados. A ordem vinha da Presidência da República. Então, você obedece. O coronel que veio me convocar dizia que eu tinha que defender a minha pátria”, disse, em entrevista para o Gazeta Online.

A ENTREVISTA

O senhor já assistiu ao documentário?

Não. Vi ontem (quinta-feira) um comentário de uma pessoa a respeito. Sabe o que acontece? O ódio... O pessoal da esquerda não perdoa. A CNV não avançou por causa disso. Vários colegas iam lá esclarecer, para passar a história triste e não repeti-la, mas tem a intolerância das pessoas que põem a gente como assassinos, e eles mataram muito também.

Cláudio Guerra e imagens projetadas de vítimas da ditadura militar. (4ventos Produtora)

O senhor acredita que o país estava sob uma ameaça comunista naquele período?

Existia o perigo real de nosso país se tornar país comunista. O país foi para a rua querer que o Brasil reagisse. A maioria dos que se diziam guerrilheiros foram treinados em Cuba. Havia, sim, risco. Não sei também se foi propaganda do governo americano.

Hoje fala-se de novo sobre ameaça comunista. O que acha?

Sou alheio a essas coisas. Procuro trabalhar para Deus. E isso não tem partido. A palavra de Deus diz que tenho que respeitar a autoridade, seja ela quem for. Se o PSDB for presidente, tenho que estar submisso a ele. Se for o Lula, se for o capitão do Exército, tenho que estar submisso. Não posso ser hipócrita de pregar uma coisa e viver de outra. Nosso país é país sofredor. Precisa de líderes que conduzam melhor? Precisa. Mas não perco tempo com isso. A imprensa é vigilante para mostrar a verdade às pessoas.

O senhor diz que cumpria ordens. Mas naquele tempo não conseguia perceber que fazia algo errado?

No meu entendimento, era o que todo o serviço de espionagem faz até hoje. E era obedecer ordem superior. Foi um período triste, negro para nossa história. Hoje, cito o Perly Cipriano (petista e ex-preso político). Ele tem os ideais dele e eu tenho os meus. Somos amigos, temos diálogo. E tem que ser isso, temos que conversar. A pacificação que tem hoje, entre mim e Perly, tinha que ser no país inteiro. Não adianta carregar ódio de ninguém. Tem que perdoar. Jesus ensinou a perdoar. Se quiserem me perdoar, estou aí.

 

"É A BANALIZAÇÃO DO MAL"

 Por Rafael Braz | Editor do C2 de A Gazeta 

"Pastor Cláudio", o filme, é incômodo. Ao mesmo tempo que o espectador tem vontade de acompanhar cada vez mais os relatos de Cláudio Guerra, a frieza com que o entrevistado conta as histórias protagonizadas por ele como agente da ditadura é de embrulhar o estômago.

Em entrevista por telefone, a diretora Beth Formaggini conta que a ideia não era contrapor Guerra, mas escutá-lo. "Queríamos que ele revelasse os próprios atos. Ele já tinha falado no livro ("Memórias de uma Guerra Suja", de Rogério Medeiros e Marcelo Netto), mas no cinema é diferente. O cinema captura não só os fatos, mas também o espírito deles. Você ler esses relatos é diferente de vê-los contados em tela', diz.

"Pastor Cláudio" foi premiado no Festival de Vitória. (Arthouse/Divulgação)

A ideia do filme nasceu do trabalho anterior de Beth, "Memórias Para Uso Diário", no qual segue a viúva de Itair José, um desaparecido na chamada Operação Radar. Depois de ter contato com o livro, no qual Guerra conta ter feito parte da operação, Beth imaginou que o ex-delegado soubesse do paradeiro de Itair. "Falar com ele foi fácil. Ele nunca se recusa a falar, mas só fala o que quer. Mas quando você tem a oportunidade de uma pessoa como ele contar a história, você deve parar e escutar", pondera a diretora.

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A entrevista de "Pastor Cláudio" durou quatro horas e foi conduzida por Eduardo Passos, psicólogo que trabalha com vítimas da violência do Estado. Passos deixa seu entrevistado falar, contar suas histórias, sem em momento algum fazer juízo de valor. "O Eduardo diz que não existe afeto nenhum até o meio do filme, tem até um pouco de orgulho. É a banalização do mal mesmo", diz Beth, citando a expressão criada por Hannah Arendt durante o julgamento de oficiais nazistas. "No último ato ele comete um ato falho ao dizer que a direita o persegue... Ali o Eduardo traz o Cláudio para o filme e o discurso para os tempos atuais. É uma história que não foi contada. Não é só passado, o nosso presente está impregnado desses fatos", analisa Beth.

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