Eleitos para comandar o país e o Espírito Santo pela terceira vez, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o governador Renato Casagrande (PSB), respectivamente, tomam posse neste domingo (1º) com uma série de desafios pela frente. Os principais deles envolvem a pacificação do Brasil e do Estado — depois de eleições em clima de extrema polarização —, o enfrentamento da fome e a reinserção de famílias endividadas na economia, além da convivência com uma direita conservadora fortalecida no setor produtivo, na sociedade e nos Legislativos federal e estadual.
Esses são alguns dos principais desafios que Lula e Casagrande devem enfrentar em seus terceiros mandatos, conforme apontam os economistas Carla Beni, professora dos MBAs da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Ricardo Paixão, professor da Faculdade de Ensino Superior de Linhares (Faceli), e os cientistas políticos Luciana Tatagiba, professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp, e João Gualberto.
Lula e Casagrande são experientes e, mesmo que tenham um cenário novo para enfrentar do ponto de vista político, com uma direita e extrema-direita fortalecidas no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa, não devem ter muita dificuldade para formar uma base ampla de apoio, na avaliação dos cientistas políticos.
No Espírito Santo, João Gualberto aposta em uma oposição a Casagrande de maneira mais forte de apenas quatro deputados na Assembleia Legislativa. No cenário nacional, Luciana Tatagiba faz sua análise: "Vamos ver uma reedição do toma lá, dá cá com esse Congresso que foi eleito, com o avanço do centrão e da extrema-direita", aposta.
O grande desafio de Lula e Casagrande, no entanto, será a pacificação do país. Especialistas apontam a divisão explícita entre quem apoiou a vitória do petista e os que votaram no ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — a diferença entre os dois foi de pouco mais de 2 milhões de votos. No Estado, Bolsonaro saiu vitorioso nos dois turnos.
"Não podemos esquecer que Bolsonaro é um fenômeno entre os capixabas. O secretariado de Renato Casagrande deveria também refletir essa ascensão da direita. Ele não ganhou a eleição no primeiro turno e o grande articulador com a direita foi (o vice-governador) Ricardo Ferraço", pontua Gualberto.
No cenário nacional, a economista Carla Beni alerta que o primeiro passo será "pacificar o país sob o contexto dos Poderes", com a divisão do que cabe ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, principalmente diante do protagonismo deste último no governo que se encerrou em 2022.
A cientista política fala em refazer os "pactos civilizatórios", já que não foram poucos os ataques trocados entre pessoas que estão nos mais altos cargos da República brasileira nos últimos quatro anos, assim como entre os apoiadores do antigo e do novo governo durante e após a eleição. Houve de atos antidemocráticos a atos terroristas para protestar contra o resultado das urnas.
Em relação à articulação política, as professoras da FGV e da Unicamp ressaltam que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição foi o primeiro grande teste do governo Lula que se inicia neste domingo (1º). A PEC foi aprovada com amplo apoio no Senado e na Câmara dos Deputados.
O combate à fome é apontado como o maior desafio que Lula vai enfrentar em seu terceiro governo pela economista Carla Beni. Para a professora Luciana Tatagiba, da Unicamp, vai ser preciso aproveitar "a lua de mel do primeiro ano de mandato" para passar os projetos mais importantes e já começar a mostrar resultados, pois em 2024 já tem eleições municipais e a cobrança será maior.
Elas destacam que o cenário é diferente do que Lula enfrentou há 20 anos, quando assumiu o seu primeiro mandato e conseguiu retirar o Brasil do mapa da fome. Agora, além de todas as questões políticas já citadas, há ainda um cenário econômico mais difícil.
Na lista de desafios pontuados pelos economistas e cientistas políticos estão ainda a recuperação da economia brasileira, as melhorias na educação e na saúde — áreas que foram muito afetadas pela pandemia e pelo desmonte de políticas públicas nos últimos quatro anos —, a aprovação de reformas e o resgate da credibilidade do Brasil junto a organismos internacionais em relação às pautas ambientais.
Muitas pautas nacionais se repetem nos desafios a serem enfrentados no Espírito Santo, como na política, na saúde e na educação, mas há algumas situações mais particulares quanto à economia. Os economistas Carla Beni e Ricardo Paixão destacam entre as questões a serem enfrentadas por Casagrande: ajuste das promessas feitas ao longo da campanha à queda da receita estadual com a redução do ICMS dos combustíveis, da telefonia e da energia elétrica; qualificação profissional para atender os arranjos produtivos locais; além da reinserção de famílias endividadas na economia.
Pacificar o país e o Estado, depois de uma eleição hiperpolarizada, como destaca o cientista político João Gualberto, vai ser o primeiro desafio dos governos Lula e Renato Casagrande. A economista Carla Beni fala em deixar claro o papel de cada Poder — Executivo, Legislativo e Judiciário — para reduzir os conflitos que marcaram os últimos quatro anos na esfera federal. Ela e Gualberto defendem que Lula deve deixar claro que vai governar para todos o tempo todo. Para ele, as equipes formadas devem contemplar a correlação de forças políticas, tanto no governo federal quanto no estadual. Já a cientista política e professora da Unicamp Luciana Tatagiba destaca que será necessária muita articulação política para conduzir o país com a divisão que se firmou durante a eleição e com a pequena diferença de votos entre Lula e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). "Bolsonaro perdeu a eleição, mas o fenômeno que o elegeu se fortaleceu. O primeiro desafio do Lula é pacificar e repactuar acordos mínimos entre os campos em disputa", afirma.
O Brasil voltou ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e a situação se agravou nos últimos anos, com a pandemia da Covid-19. De acordo com dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, 33,1 milhões de pessoas no Brasil não têm o que comer e 125,2 milhões de brasileiros (58,7% da população) convivem com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave. Para Beni, "retirar o Brasil do mapa da fome é o maior desafio de todos" do governo federal. Tatagiba ressalta que vai precisar dar resposta ainda no primeiro ano de mandato. "O que permitiu o país sair do mapa da fome no mandato anterior de Lula é diferente de agora, com o país numa situação econômica muito mais complicada, num contexto de enorme arrocho econômico", destaca a cientista política.
Além de enfrentar os reflexos da pandemia na educação, como evasão escolar e déficit de aprendizagem, os novos governos terão de lidar com o desmonte das políticas públicas voltadas para a ciência e a tecnologia nos últimos quatro anos. Carla Beni cita a necessidade de valorização do incentivo à pesquisa, com aumento do valor das bolsas de metrado e doutorado. O economista Ricardo Paixão salienta que, no contexto do Espírito Santo, é preciso articular melhor "os centros de educação com os arranjos produtivos do Estado", para que haja possibilidade de qualificação de mão de obra especializada para atender às necessidades econômicas locais, sem que as empresas precisem recorrer a outros Estados para quase toda a sua força produtiva. "Há uma demanda por profissionais altamente qualificados em vários setores e, se houver oferta de qualificação no Estado, isso gera emprego, renda e aumenta o consumo consciente", completa o economista e professor da Faceli.
"Um desafio grande é reforçar a estrutura do SUS, porque ele foi muito desgastado depois da pandemia. Há atrasos e filas de espera, esgotamento de profissionais", pontua a economista e professora dos MBAs da FGV. A superação das dificuldades na área da saúde passam também, na avaliação de Luciana Tatagiba, por uma melhor qualidade do investimento na área e pela capacidade de dar respostas à população. Além disso, o governo federal vai precisar remontar e reconstruir muitas políticas públicas da área da saúde desmontadas na gestão Bolsonaro. Uma delas é a cobertura vacinal infantil, em que o Brasil era referência mundial e aparece hoje entre os dez países com menor cobertura vacinal, conforme dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) — a taxa caiu de 93,1% para 71,49%.
Para o fortalecimento da economia e a redução das desigualdades no país, Carla Beni defende uma reforma tributária "que realmente tribute mais a renda, o patrimônio, e menos o consumo final". Ela defende a implementação da taxação das grandes fortunas e o aumento da alíquota para quem ganha mais e cita que a média da alíquota do Imposto de Renda (IR) nas maiores economias é de 42%, enquanto no Brasil é de 27,5%. "A gente tributa pouco quem ganha mais. Por isso, essa reforma tributária é muito relevante do ponto de vista das reformas", frisa. Já Ricardo Paixão aponta a necessidade de medidas para ajudar a parcela da população que "está passando por uma asfixia financeira", nas quais entende que é preciso haver articulação com a qualificação para gerar melhoria da renda. "É preciso ter essa escadinha para melhorar a posição das pessoas no mercado de trabalho e para que elas saiam do endividamento. É preciso criar mecanismos para a economia local prosperar. Os arranjos produtivos precisam ser incentivados", comenta o economista sobre o Espírito Santo.
O reforço da política ambiental nacional é considerado estratégico do ponto de vista interno e também para a política externa brasileira, na avaliação de Luciana Tatagiba. Já a economista Carla Beni ressalta que o Brasil precisa se inserir novamente nas discussões sobre meio ambiente no cenário mundial. O tema tem relação direta com a área da agricultura e, consequentemente, com a produção agrícola nacional. Deve estar alinhado com questões de preservação ambiental, pois algumas das principais críticas ao governo Bolsonaro por parte de organismos internacionais estão relacionadas à atuação na área de meio ambiente, já que houve avanço de desmatamento nos últimos anos na Amazônia.
Para João Gualberto, um dos grandes desafios de Lula e Casagrande será "governar com uma direita aguerrida, que é novidade na política brasileira". Ele considera que essa direita tem uma identidade muita ligada ao movimento cristão conservador, que não é formado apenas por evangélicos, como muitas pessoas tendem a acreditar. "Este é o grande desafio dos dois governos: trabalhar com uma grande direita, uma direita conservadora que nunca teve força como agora. Lula e Casagrande não tiveram isso em mandatos anteriores", frisa. A professora de Ciência Política da Unicamp reforça que Lula já avisou que esse é um governo de transição, de coalização e que é preciso restabelecer as bases. "Ele não vai fazer um governo de esquerda, mas certamente vai ser muito pressionado pelas forças da esquerda em relação às agendas que são importantes para os movimentos progressistas e sociais. Ele vai precisar ter muita capacidade de arbitrar interesses divergentes em um contexto muito mais hostil", complementa a cientista política.
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