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Os pontos positivos e negativos do projeto que cria 'Lei das Fake News'

Os pontos positivos e negativos do projeto que cria "Lei das Fake News"

Projeto de lei que prevê mais transparência e combate à desinformação divide especialistas. Enquanto para alguns a regulamentação é necessária, outros acreditam que a lei coloca em risco a liberdade de expressão

Publicado em 2 de junho de 2020 às 19:00

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 Fake News - Notícias falsas na internet
Projeto foi tirado de pauta no Senado nesta terça-feira . (Arabson)

Diante da polêmica que envolve a "Lei das Fake News", o projeto de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) foi retirado de pauta, a pedido dele, no Senado nesta terça-feira (2). A proposta, que prevê mecanismos de transparência nas redes sociais para impedir a disseminação de informações falsas, é alvo de críticas dentro do Congresso e em setores da sociedade civil. Apesar de a desinformação preocupar, especialistas avaliam que a regulação da internet não é o melhor caminho para tratar o tema e criticam a "pressa" com que o projeto é tratado no Legislativo.

O PL 2630/2020 teve o texto alterado por parlamentares nesta segunda-feira (1º), na tentativa de facilitar a aprovação no Senado. A nova versão, sugerida pelo autor do projeto na Casa, Alessandro Vieira, em parceria com os deputados federais Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), retirava da proposta qualquer abordagem a respeito do conteúdo e do termo desinformação, que não possui um conceito definido entre especialistas. Assim, o foco do projeto passaria a ser o combate a ferramentas e robôs que facilitam a disseminação de informações falsas.

Contudo, novas mudanças no texto original, feitas pelo relator do projeto no Senado, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), acabaram gerando mais tumulto. Em uma versão que circulou entre parlamentares, o relatório do senador exigia que contas na internet façam a verificação da identidade do responsável, dando a elas maior acesso aos dados dos usuários. Após ampla discussão no Senado e críticas, inclusive do autor do texto original, o projeto foi tirado de pauta.

As redes sociais hoje possuem sistemas de autorregulação, ou seja, cada plataforma faz moderação de conteúdo, definindo o que é ofensivo, impróprio e pode ser retirado do ar. Contudo, não há uma lei de regulamentação específica para quem compartilha as chamadas "fake news". Recentemente, a circulação de mensagens falsas a respeito da pandemia do novo coronavírus reacendeu a discussão sobre a necessidade de criar mecanismos na internet que impeçam a desinformação.  

Propostas apresentadas no Congresso preveem a criação de uma lei específica para combater robôs e perfis falsos, utilizados para promover desinformação, além de criar normas de transparência nas redes sociais. As iniciativas, apesar de elogiadas, dividem e preocupam profissionais de Direito e empresas de mídia, que veem riscos à liberdade de expressão dos usuários. A Gazeta ouviu especialistas para pontuar os principais pontos, positivos e negativos, do PL 2630/2020, em discussão no Senado. 

REGULAÇÃO DA INTERNET

A criação de uma Lei Específica em combate à disseminação de conteúdo falso e enganoso é necessária do ponto de vista da especialista em Direito Digital Patrícia Peck. De acordo com ela, o tema precisa ser tratado pela União, propondo uma regulamentação em todo o país. 

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Vejo a iniciativa de forma positiva, precisamos de uma regulação específica de fake news e precisa ser em nível federal. É importante ter uniformização da matéria. É muito parecido com o cyberbullying que aconteceu no Brasil, que se discutia o que era ou não era e a legislação em 2015 veio para tratar sobre isso de forma mais clara. Temos uma série de municípios e Estados tentando aprovar leis e não pode ser desta forma, tem que partir da União

Patrícia Peck
Especialista em Direito Digital
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Já o doutor em Direito e Garantias Fundamentais Cláudio Colnago é contra a criação de uma lei específica na internet. Ele critica o projeto no Senado e argumenta que a rede já é regulamentada atualmente pelo Marco Civil da Internet. 

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O projeto de lei das fake news padece de uma série de impropriedades que recomendam seu arquivamento. Em primeiro lugar, os provedores de aplicações de internet possuem uma escala mundial e, como tal, é recomendável que a regulação a eles aplicável seja o produto de um diálogo institucional que adote as melhores práticas regulatórias. Além disso, essa lei ignora todo o trabalho de construção regulatória democrática e dialogada realizado com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014)

Cláudio Colnago
Doutor em Direito e Garantias Fundamentais
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O Marco Civil da Internet é uma lei que regula o uso da internet no Brasil, desde 2014, por meio da previsão de direitos e deveres para quem usa a rede e de mecanismos de atuação do Estado. A lei trata de temas como privacidade e retenção de dados, além de garantir liberdade de expressão aos usuários. 

Para Peck, apesar de sua existência, o Marco Civil não tem nenhuma semelhança com o projeto de lei que é discutido no Congresso.  "O Marco Civil prestigia e valoriza a manutenção do conteúdo na internet, dizendo que só pode ser removido com ordem judicial. Exatamente isso que precisa ser corrigido com a legislação de Lei das Fakes. Porque se você tiver que esperar uma ordem judicial para remover um conteúdo, ele já fez um estrago. É importante que, com as próprias rotulações, as plataformas possam fazer isso", defende. 

LIBERDADE DE EXPRESSÃO 

O risco à liberdade de expressão é a maior crítica dos especialistas contrários ao projeto. O conselheiro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e editor do Estadão Verifica, Daniel Bramatti, teme que a lei seja usada contra o jornalismo e uma censura a minorias.

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Em países que aprovaram leis como esta, isso causou supressão da liberdade dos indivíduos. Essas leis vêm no sentido de provocar e gerar punibilidade, tentando resolver tudo por meio da punição. Isso acaba sendo um entrave à livre circulação de ideias. É evidente o problema, os algoritmos, a forma como o conteúdo falso tem sido disseminado, mas resolver por meio de punição não será a solução do problema. Isso pode ser usado como arma contra o jornalismo, contra uma minoria, um grupo que esteja tentando se colocar no debate das ideias. Existe risco real para liberdade de expressão de usuários do Brasil

Daniel Bramatti
Conselheiro da Abraji
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Colnago também compartilha da mesma ideia. Para ele, o projeto representa uma invasão à liberdade individual e de expressão das pessoas. "O que vemos no projeto é uma profusão de 'jabuticabas regulatórias', que passam desde a pretensão de regular quantas contas um indivíduo possa ter até a quantidade de mensagens que possa enviar. Trata-se de manifestação do mais absurdo intervencionismo sobre liberdades fundamentais na internet", declarou. 

A liberdade de expressão, contudo, tem um limite na visão de alguns especialistas. Para o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e especialista em Direito Constitucional Ricardo Gueiros, extrapolar a liberdade pode levar pessoas a cometerem crimes. 

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Não há direitos absolutos no Direito. Em tudo, há uma questão de ponderação e equilíbrio. As regulações na internet têm uma tendência de seguir a mesma lógica usada fora dela. Dessa forma, se o ordenamento jurídico é claro em proteger a liberdade de expressão, por outro lado, ele também é claro em dizer que há um limite para esse direito. Não se pode extrapolá-lo, sob pena de estar praticando um crime. O mais importante é que a liberdade de expressão sempre seja preservada, havendo tão-somente uma regulação quando dela se extrapola. Não é diferente no 'mundo real' (fora da internet)

Ricardo Gueiros
Especialista em Direito Constitucional
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Peck acrescenta que a liberdade de expressão, quando oferece danos ao cidadão, precisa de uma intervenção. "Eu acredito que a liberdade de expressão é uma garantia fundamental, mas está sujeita a limites para não gerar situação de danos individuais ou coletivos. Preservamos hoje a liberdade, a livre iniciativa, mas a partir do momento que alguém cria uma notícia falsa e utiliza de métodos ardilosos para criar e manipular o que é verdadeiro e falso, e usa de robôs para disseminar aquilo, o Estado tem a responsabilidade de proteger o cidadão, principalmente dos riscos do abuso e excesso de liberdade de expressão."

DEBATE DO TEMA

A retirada de pauta do projeto 2630/2020 no Senado, nesta terça-feira (2) teve, entre outras justificativas, a de que era preciso dar mais tempo aos senadores para discutir a proposta. A "pressa" com que o tema tem sido tratado no Legislativo também é criticada por especialistas, que avaliam a necessidade de um debate maior com a sociedade. 

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É importante regular um sistema que influencia a vida das pessoas e não tem uma legislação específica, mas não nesse momento, durante uma pandemia, e da forma como tem sido feito, sem debate ou discussão com a academia, sociedade civil, senadores em Brasília. A lei está virando um 'Frankenstein', cheio de recortes e mudanças. Se a lei passar desse jeito, ela põe mais em risco as pessoas do que protege, ela passa a perseguir os usuários

Sergio Denicoli
Pós-doutor em Comunicação Digital
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"O projeto de lei ainda está incompleto, precisa ser amadurecido, melhor debatido, foi feito na pressa, mas é um tema que cresce no mundo desde 2016. Já temos tentado trabalhar essa regulamentação desde 2018, mais de 16 países têm tratado a nível de regulamentação as 'fake news'. É um tema complexo, tem que se ter cuidado para não gerar um desvio no sentido de como se faz a rotulação do verdadeiro e falso, e que possa permitir opiniões divergentes", opina Patricia Peck.

"É preciso um debate profundo a respeito deste assunto. Estão tentando reinventar no Brasil a regulação da internet, limitando uso da mensagem, burocratizando um ambiente que nasceu livre. Isso é totalmente desproporcional, fere liberdades individuais, além de estar sendo discutido e aprovado às pressas. O Marco Civil da Internet foi construído depois de uma década de diálogo, não foi um projeto que veio de uma ou duas pessoas", defende Claudio Colnago.

Para Bramatti, a interpretação de desinformação é subjetiva. Caso a lei seja criada, ela poderá censurar opinões divergentes e transformar o Judiciário em um intérprete do que é verdadeiro ou falso. 

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Não consigo ver uma definição consensual, nem entre os especialistas, sobre o que é desinformação. Os parlamentares tentaram tirar do projeto o conceito e atribuir isso a um grupo de trabalho. A gente vai estar aprovando um projeto de lei sobre desinformação sem saber a definição crucial do tema. O juiz vai se transformar em um intérprete do que é verdade e do que é mentira, do que é sabidamente enganoso e o que não é. Isso é muito subjetivo

Daniel Bramatti
Conselheiro da Abraju
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COMBATE A ROBÔS E PERFIS FALSOS

O combate a robôs e perfis falsos, que promovem a desinformação, é o principal foco da nova versão do texto do projeto apresentado pelo senador Alessandro Vieira, em parceria com os deputados federais Felipe Rigoni e Tabata Amaral. Especialista em Direito Digital, Patricia Peck avalia a necessidade de um punição rígida para este tipo de contas, que impulsionam o compartilhamento de informações falsas.

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Hoje, sabemos que há empresas, conjunto de pessoas que se reúnem para ofertar, pegar robôs, vender perfis e manipular outros, para que informações se disseminem. Isso é uma distorção completa do modelo da tecnologia e precisa ser combatido. A própria parte punitiva, a legislação precisa prever penalidades distintas e proporcionais para quem cria, para quem manipula por meio de robôs e quem repassa, muitas vezes desavisado, por outra penalidade

Patricia Peck
Especialista em Direito Digital
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"Atribuir multa é eficiente e eficaz, mas precisa ter abordagem criminal para quem esteja criando quadrilhas para causar danos sociais coletivos. E um agravamento de quando a pessoa que faz isso tem ciência do que faz e pelo cargo que ocupa, se é um influenciador, se exerce cargo público", acrescentou. 

Apesar de criticar a forma como o projeto tem sido discutido no Senado e ser contra as alterações do texto que expõe usuários por meio de uso de documentos, Sergio Denicoli acredita que é preciso ter transparência nas redes sociais. 

"Para mim, este é o principal avanço. É preciso permitir ao usuário saber que tipo de informação ele está sendo submetido, de onde vem, se foi paga, disseminada por um robô ou perfil falso. Sou a favor dessa regulação. Contudo, da forma como as alterações têm sido apresentadas, eu sou contra o projeto", finalizou. 

SANÇÕES

As sanções previstas no projeto que cria a "Lei das Fake News" vão desde advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas; multa; suspensão temporária das atividades da plataforma e até proibição de exercício das atividades no país. As punições serão aplicadas às plataformas não pelo conteúdo que é compartilhado pelos usuários, mas pela ausência de transparência nas moderações realizadas. 

O uso do termo fake news e a complexidade da desinformação

O projeto de lei 2630/2020 ganhou o apelido de "lei das fake news". O termo fake news (notícias falsas) é amplamente usado para definir conteúdos falsos ou enganosos compartilhados via redes sociais e aplicativos de mensagens. No entanto, a utilização dele é criticada por estudiosos da área, que preferem usar a palavra desinformação. A expressão, de acordo com a pesquisadora britânica Claire Wardle, líder da iniciativa First Draft, não explica a complexidade de todas as formas de mentira que existem hoje. "Muitas das informações mais poderosas têm a forma visual. Não são sites que parecem notícias. Além disso, muito conteúdo problemático não é falso. É genuíno, mas usado fora de contexto", explicou para A Gazeta em 2018. Outro problema é que o termo fake news já serviu ao discurso de líderes autoritários de todo o mundo como arma, afirmou a pesquisadora. O objetivo é desacreditar o trabalho da imprensa quando não gostam de alguma notícia (tipo de texto jornalístico).

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