Seis meses após a Lei Anticrime ter entrado em vigor no país, alterando normas dos processos criminais, a Corregedoria do Ministério Público Estadual (MPES) publicou uma recomendação aos promotores de Justiça para que, durante as audiências de custódia, façam o pedido de prisão preventiva aos acusados que estão presos em flagrante. A medida, segundo o órgão, é para evitar questionamentos de que houve nulidade na prisão preventiva realizada sem o requerimento do Ministério Público, como prevê a nova lei.
Por conta desse argumento, segundo a corregedora-geral do MPES, Carla Viana Cola, que assina a recomendação, há um "grande número de habeas corpus impetrados junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), questionando a legalidade de prisões preventivas decretadas de ofício pelo magistrado, durante as audiências de custódia".
Ela cita a alteração do artigo 311 do Código de Processo Penal, feita pela Lei Anticrime, que retirou a possibilidade de o juiz decretar a prisão de ofício ou seja, por conta própria , sem ouvir o Ministério Público, que é o titular da ação penal.
Destaca também uma decisão judicial do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), de julho deste ano, que concedeu habeas corpus a um preso por este motivo, e também outra jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
"Considerando precedentes jurisprudenciais já existentes nos tribunais superiores, no sentido de que o sistema penal acusatório não se compatibiliza com a decretação da prisão preventiva pelo magistrado, sem a existência de requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou de representação da autoridade policial", disse a recomendação.
Ao ocorrer uma prisão em flagrante, o procedimento previsto na lei é de que o acusado seja encaminhado, em 24 horas, para uma audiência de custódia, na qual ele é ouvido por um juiz, com a participação do Ministério Público e da defesa. Nessa audiência, o magistrado decide sobre a necessidade de manter o acusado preso. Caso ele preencha os requisitos da lei, a prisão pode ser convertida em temporária, de cinco dias, ou preventiva, que não possui prazo.
Desde o dia 23 de março, contudo, a realização de audiências de custódia está suspensa no Espírito Santo, por conta da pandemia de Covid-19. Com isso, segundo o TJES, os autos de prisão em flagrante estão sendo decididos pelos magistrados no modelo anterior, em que somente se examina o documento sobre a prisão em flagrante delito, sem entrevista ao autuado, conforme a Recomendação 68 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O TJES não respondeu sobre o citado "grande número de habeas corpus impetrados" para pedir a soltura desses acusados, com base em suposta ilegalidade de prisões preventivas decretadas por iniciativa dos próprios magistrados, e se houve aumento.
Afirmou, entretanto, que se trata de uma questão jurídica controvertida, que possui divergência doutrinária, assim como tantas outras surgidas com a nova Lei Anticrime. "Tratando-se de questão jurisdicional, o TJES não emite posicionamento, em respeito à independência funcional de cada magistrado", afirmou, em nota.
O Ministério Publico Estadual foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
Segundo o presidente da Associação dos Membros do Ministério Público Estadual, promotor Pedro Ivo de Sousa, a recomendação da Corregedoria foi dada a partir de uma percepção dos procuradores criminais de que estão aumentando os questionamentos de acusados sobre as prisões em flagrante. Por isso a necessidade de uma orientação técnica sobre a mudança da lei.
"Uma das funções da Corregedoria é orientar e essa recomendação foi bem recebida por nós. Traz o Ministério Público para um papel central de colaboração, é algo que vem para um aperfeiçoamento da atuação. A alteração legislativa é recente, o que traz um novo paradigma para a atuação do Ministério Público e também do magistrado. Não representa nenhuma crítica à atuação dos juízes", disse.
Ele destaca que a mudança na Lei Anticrime pretendeu consagrar o sistema acusatório, ao preconizar que, para que o Estado exerça o direito de punir, exige-se que as partes produzam as provas e o juiz julgue com base nessas provas trazidas, não podendo cumular funções de investigar e julgar.
A redação anterior do Código de Processo Penal, para o artigo 311, previa que "em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial". Desde o final de janeiro de 2020, quando a Lei Anticrime passou a valer, a expressão "de ofício" foi retirada.
No entanto, a interpretação do artigo 310 ainda faz com que juristas tenham diferentes interpretações sobre o tema. O artigo diz que "após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos (...)".
Em consulta ao Diário da Justiça, a reportagem confirmou a existência de dezenas de habeas corpus apresentados questionando a impossibilidade da prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, ou seja, sem que haja o pedido do Ministério Público. No entanto, as decisões dos desembargadores Pedro Valls Feu Rosa, Sérgio Gama e Fernando Zardini têm sido de rejeitar esse argumento.
"Entendo que ao converter a prisão em flagrante em preventiva o juiz não estaria agindo de ofício, mas provocado pela própria prisão em flagrante. Isto, pois, nessa modalidade de prisão preventiva, o auto de prisão em flagrante funciona como uma espécie de representação tácita ou implícita da autoridade policial. Diferentemente do Ministério Público, por exemplo, que requer a prisão preventiva, o delegado de polícia 'representa' pela sua decretação. Essa representação objetiva, justamente, levar ao conhecimento do juiz os fatos que fundamentam a adoção dessa medida extrema", alegou Sérgio Gama, em um julgado.
"Mesmo que o magistrado não realize a audiência de custódia, limitando-se a homologar a prisão em flagrante, o STJ tem firmado entendimento de que não há que se falar em nulidade [...]", pontuou Feu Rosa, em outra ação.
Para o mestre em Direito e professor da Multivix Rivelino Amaral, a nova norma determina expressamente que o Ministério Público precisa ser ouvido em relação à prisão e, se ele ficar inerte, sem se manifestar, pode gerar nulidade ao processo.
"O que vai prevalecer é a decisão do juiz, mas o Ministério Público tem que dar seu parecer sempre. O juiz não pode 'converter' sozinho o flagrante em prisão preventiva, pois isso é, no fundo, o mesmo que 'decretar' de ofício, expressamente vedado. Há a imposição de imparcialidade para o juiz, que a Lei Anticrime buscou reforçar. A aplicação dessas novas normas ainda está em fase embrionária, então é normal que alguns entendimentos não estejam ainda consolidados", avaliou.
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