O percentual de brasileiros que são indiferentes à forma de governo no país, se é um governo democrático ou um ditatorial, alcançou em dezembro de 2019 seu maior patamar do milênio. Uma pesquisa feita pelo Datafolha mostra que 22% dos entrevistados acredita que "tanto faz" se o país vive uma democracia ou uma ditadura, um crescimento de nove pontos percentuais em relação à última pesquisa, realizada em outubro de 2018, durante o primeiro turno das eleições daquele ano. Desde junho de 2000, quando 29% dos entrevistados não viam diferença entre os dois sistemas, os brasileiros não relativizavam tanto a importância da democracia.
Mas por que está crescendo a noção de que governos democráticos e ditatoriais são todos iguais? A reportagem de A Gazeta ouviu especialistas para analisar esta mudança no comportamento da população. É importante ressaltar que a pesquisa anterior, feita durante a campanha eleitoral, foi realizada em um período em que os brasileiros estavam se preparando para participar diretamente da política, ao votar para escolher deputados, senadores, governadores e presidente.
Para o cientista político e professor da PUC Minas Malco Camargo o dado é preocupante, mas a queda é "natural", já que quando a última pesquisa foi às ruas, em dezembro de 2019, o brasileiro ocupava uma posição de ser apenas um espectador da política, o que o deixa menos confiante no sistema adotado.
"Parte do nosso povo não tem apreço pela democracia porque busca soluções mais rápidas, sem a negociação no ambiente público e privado que é característico do nosso sistema. Isso é perigoso. Não se pode procurar soluções a qualquer preço e nem esperar que os problemas sejam solucionados por alguém que venha com um status de herói nacional ou salvador da pátria. É preciso valorizar nossas instituições", afirma.
Camargo ressalta que as declarações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que, segundo ele, constrói uma narrativa de desvalorização de outros Poderes, como o Legislativo e o Judiciário, acaba por contribuir para a falta de apoio à democracia.
"Um exemplo disso são as críticas dele e de seu núcleo às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), colocando o Judiciário como um dos vilões de seu governo. Quando ele se coloca nesse papel, de salvador da pátria, ele deixa de contribuir para a criação da identidade democrática do país", explica. Em outubro de 2019, Bolsonaro postou em suas redes um vídeo onde ele era um leão em que era atacado por hienas, uma delas representando o STF. Posteriormente, o vídeo foi deletado e o presidente se desculpou pela postagem.
Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper, afirma que a aprovação da democracia nunca atingiu 100% da população, mas o desgaste dela acaba contribuindo para trazer à tona a relativização de práticas polêmicas como a tortura, o fechamento do Congresso e a repressão política.
"Esta parte dos que consideram a ditadura como alternativa sempre existiu, mas, desde 1988, com o nascimento da Nova República, esta parcela nunca impediu que as instituições democráticas deixassem de existir. No entanto, a gente vê que o 'dique' da democracia tem algumas rachaduras, ainda estamos longe do rompimento total dessa 'barragem', mas claramente estas rachaduras vão ficando cada vez maiores. Um dos efeitos disso é a falta de compromisso com os ditames democráticos. O que é um pouco do que vemos no atual governo, com a constante guerra institucional com os Poderes, com ataques ao Legislativo, ao Judiciário e à própria sociedade civil organizada, nas ONGs e na imprensa livre", analisa.
Outro traço do perfil do brasileiro apontado pela pesquisa é o desconhecimento a respeito do Ato Inconstitucional 5, o AI-5, de 1968, uma das medidas da ditadura militar no Brasil, que fechou o Congresso Nacional, determinou a censura e que acabou por institucionalizar a tortura. O levantamento mostra que 62% dos entrevistados desconhecem o que foi o pacote.
Consentino destaca, contudo, que este percentual caiu ao comparar com os dados da última vez que a pergunta foi inserida na pesquisa, em 2008. Naquela época, 82% dos entrevistados nunca tinham ouvido falar do AI-5.
"Há duas análises sobre isso. Uma delas expõe o problema grave da educação, em que as pessoas não conhecem nossa história. O que nos leva também à discussão de que quando retiraram as aulas de 'moral e cívica' da escola, não colocaram uma outra disciplina para estimular a educação política. Outro fator, quando se analisa que o percentual diminuiu, é que ouvimos o deputado federal mais votado da história, Eduardo Bolsonaro (PSL), que é filho do presidente, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionarem o AI-5 como uma alternativa possível de ser usada em pleno regime democrático. Ou seja, que tipo de informação as pessoas que já ouviram falar do AI-5 tiveram dessas medidas? É um perigo que elas tenham ouvido falar de uma maneira que não seja algo reprovável", alerta.
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