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Prestes a virar armazém, Teatro Carmélia foi símbolo da redemocratização

Prestes a virar armazém, Teatro Carmélia foi símbolo da redemocratização

Centro cultural, em Vitória, viveu seus dias de glória entre 1986 e 1991 e recebeu até comícios políticos. Abandonado, local deve passar a abrigar grãos, como café e milho

Publicado em 6 de agosto de 2020 às 06:00

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Inauguração do Centro Cultural Carmélia Maria de Souza, em 1986. Na foto três governadores do Estado: José Moraes, Gerson Camata e Max Mauro
Inauguração do Centro Cultural Carmélia Maria de Souza, em 1986. Na foto, os três primeiros governadores do Estado após redemocratização: José Moraes, Gerson Camata e Max Mauro. (Antônio Carlos Sessa Neto/Arquivo Público do Espírito Santo)

Prestes a se tornar um depósito de grãos, como milho e café, o Centro Cultural Carmélia de Souza foi um dos mais efervescentes pontos de encontro de movimentos políticos e culturais do Espírito Santo no final dos anos 1980. Inaugurado em 1986, o Teatro Carmélia, como ficou conhecido, era frequentado por artistas e políticos reconhecidos no cenário nacional, que celebravam a liberdade de expressão com o fim da censura e a reabertura democrática no país, após os anos de chumbo do governo militar.

A reportagem conversou com historiadores, jornalistas e artistas que viveram no período e descreveram o Carmélia como um símbolo no Estado da democracia e da esperança com o novo modelo de governo, um sentimento comum na sociedade brasileira da época. Além do teatro, o centro cultural contava com cinema, biblioteca, espaço de memória da história capixaba e galeria de arte.

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Era um momento de grande euforia entre os brasileiros, com o retorno da democracia. Vários filmes que antes não podiam ser exibidos agora estavam à disposição. O clima era de maior liberdade para se expressar e o Carmélia tinha uma importância política muito grande. Era lá que artistas locais se apresentavam. Ele era o símbolo das artes sem censura no Espírito Santo

João Gualberto Vasconcellos
Historiador e cientista político
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Construído em um antigo galpão do IBC (Instituto Brasileiro de Café), inutilizado após os aterros que tiraram a zona portuária da região, o centro cultural era um projeto já discutido desde 1983. Um dos principais objetivos era atender a demanda de eventos culturais que já não era suportada pelo Teatro Carlos Gomes, único teatro da Capital até então.

escritora e jornalista Jeanne Bilich conta que havia uma grande dificuldade de se conseguir agenda para eventos no Carlos Gomes, o que acabou levando o Carmélia a se tornar um espaço alternativo, mais democrático, onde artistas locais e também grandes companhias de teatro do eixo Rio-São Paulo conseguiam se apresentar.

"Era um espaço de vanguarda, mas não significava que era de artistas de menor qualidade ou expressão. Até grandes óperas eram realizadas lá. Os atores e as atrizes locais e os que vinham de fora traziam para o público todo esse caráter político da reabertura democrática. Me lembro do estacionamento lotado de carros, as peças sempre estavam cheias e havia uma programação muito intensa nessa época", recorda a jornalista.

Em um período em que os cinemas só apresentavam os filmes mais comerciais, de grande bilheteria do audiovisual mundial, o cineclube Ludovico Persici, no Carmélia, se tornou o espaço do "cinema de arte", ao exibir filmes premiados em festivais.

"Eram filmes de alta qualidade, que traziam reflexões importantes daquela geração. O cinema do Carmélia era uma opção alternativa, como hoje é o Cine Metrópoles, na Ufes, ou o Cine Jardins. Havia um pequeno bistrô por lá também, onde as pessoas ficavam conversando. Era um ponto de encontro", destaca o jornalista e diretor de teatro e cinema Luiz Tadeu Teixeira.

Inauguração do "Carmelão" foi destaque no jornal A Gazeta em 1986(Cedoc/A Gazeta)

TEATRO RECEBEU LEONEL BRIZOLA EM 1989

A edição do jornal A Gazeta do dia 11 de setembro de 1986 trata a inauguração do "Carmelão" como uma "festa política". O Estado era governado por José Moraes, que era vice de Gerson Camata, que havia se afastado do cargo para disputar a eleição ao Senado. Outro nome importante da política capixaba que também esteve no evento foi Max Mauro, que seria governador no ano seguinte.

Além das peças e dos filmes, o Carmélia também era um espaço onde movimentos políticos realizavam convenções, palestras e comícios. Em 1989, em uma convenção do PDT, o então candidato à Presidência da República, Leonel Brizola, discursou do palco do centro cultural.

"Aquele espaço era muito frequentado por todos, pela proximidade com a rodoviária, o Clube Náutico Brasil e até por prostíbulos famosos que tinham ali na região. Em uma época em que não existia, praticamente, internet, sempre que havia algo, seja um evento cultural ou político, as pessoas iam", explica o historiador Fernando Achiamé.

Cadeiras entregues à ação do tempo no Teatro Carmélia M. de Souza(Fernando Madeira)

FALTA DE MANUTENÇÃO FEZ O ESPAÇO PERDER RELEVÂNCIA NOS ANOS 90

O "auge" do complexo, período em que teve um maior volume de programações culturais, deu-se entre 1986 e 1991. No entanto, o abandono do espaço já era tema de reportagens em 1992. Na época, a TV Gazeta mostrou que a falta de segurança no entorno do centro cultural, além das condições precárias de cadeiras e banheiros, afastavam os frequentadores do Carmélia.

Luiz Tadeu Teixeira conta que até mesmo os artistas reclamavam dos problemas técnicos que a estrutura do teatro apresentava, o que fez com que ele passasse a ser preterido pelas companhias.

"O que ocupa um espaço cultural é a programação. O Carmélia, apesar de ter um espaço grande e uma boa estrutura de palco, tinha um problema estrutural que era a posição do público. Não era a ideal, pois ficava no mesmo nível do palco, não era como o Carlos Gomes, por exemplo. Havia uma expectativa de que fossem feitas melhorias, mas isso não aconteceu. Quando começou a ter problemas de luz, de som e outros equipamentos, as peças foram diminuindo e ele foi sendo abandonado", conta.

Ato em defesa do Centro Cultural Carmélia.(Vitor Jubini)

Mesmo com o espaço sendo reformado pela Prefeitura de Vitória, em 2010, artistas apontam que a manutenção do centro cultural não era ideal e que os problemas voltaram a aparecer. Recentemente, a administração da Capital apresentou uma proposta de transformar o lugar na "Cidade do Samba", para servir de apoio às escolas de samba durante o carnaval.

Contudo, com o leilão dos galpões do IBC em Jardim da Penha, a União, que é detentora do imóvel, pediu a devolução do espaço, que voltará a funcionar como armazém de grãos, como sacas de café e milho, e abrigará o laboratório e escritórios da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

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É lamentável ver um espaço de cultura ser transformado em depósito de sacos de grãos. Cada espaço cultural que fecha é uma opção a menos para a população e para a expressão artística. Como dizia Ferreira Goulart, 'a arte existe porque a vida não basta', mas o que vemos é a arte cada vez mais sufocada

Jeanne Bilich
Jornalista e escritora
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