O Projeto de Lei 174/2021, aprovado pela Câmara de Vitória e que proíbe a exigência do comprovante de vacinação contra a Covid-19 para ter acesso a estabelecimentos na Capital, contraria uma determinação do governo do Espírito Santo e, se sancionado, deve acabar na Justiça.
Apesar de haver divergências, juristas consultados por A Gazeta veem inconstitucionalidade na proposta. Essa questão, inclusive, foi levantada pelos próprios parlamentares durante a sessão da Câmara, nesta segunda-feira (14). Mesmo assim, foi aprovado por 9 votos contra 4.
O projeto, que é de autoria do vereador Gilvan da Federal (Patriota), teve parecer contrário emitido na Comissão de Saúde pelo vereador Duda Brasil (PSL), mas foi derrubado.
Duda questionou a competência da Câmara de Vitória para legislar sobre o assunto, algo que também foi levantado por Camila Valadão (Psol) durante a sessão.
“A legalidade não deveria ser um mero detalhe nessa Casa. Depois dessa votação de hoje, vamos comunicar instâncias cabíveis para que se movam no sentido de garantir aquilo que é a legalidade”, afirmou.
A vereadora Karla Coser (PT), por sua vez, chamou atenção dos colegas, especialmente aos que são formados em Direito, para a inconstitucionalidade do projeto que ela classificou como “bolha de sabão”. Ela citou a portaria 0-20 do governo do Estado, que determina a exigência do comprovante de vacinação para ter acesso a estabelecimentos no Espírito Santo.
“Queria chamar a atenção aos vereadores Davi, Piquet e Dalton, operadores do Direito formados, chamando a responsabilidade cientes do curso legislativo de um projeto claramente inconstitucional. Se esse projeto não for vetado pelo prefeito Lorenzo Pazolini, vai ser derrubado pelo Tribunal de Justiça”, disse.
Leandro Piquet (Republicanos), que foi citado por Karla, disse ter consciência que “a probabilidade da lei votada ser considerada inconstitucional era real”, mas que o voto dele era um protesto contra o governador Renato Casagrande (PSB).
Para o professor de Direito Constitucional da Faesa Dalton Morais, não há dúvidas que o projeto é inconstitucional e seria facilmente derrubado em caso de judicialização. Ela pontua que, em pelo menos duas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal (STF) já deixou claro que "cobrar o passaporte da vacina é uma medida constitucional".
"Uma delas foi ao suspender, de forma liminar, a portaria do MEC que proibia a exigência de comprovante de vacinação para matrícula em institutos federais, e outra quando o pleno do STF formou maioria para a obrigatoriedade do passaporte de vacina para entrada em território brasileiro. Ao estabelecer isso, o Supremo não só diz que os entes devem agir nesse sentido, como é obrigatório que ajam. Eu não tenho dúvidas que o projeto aprovado pela Câmara de Vitória é inconstitucional”, destacou.
O mesmo entendimento tem a professora de Direito Constitucional da PUC-SP Gabriela Zancaner. De acordo com ela, por mais que o município tenha competência concorrente ao Estado e à União para legislar sobre saúde, é necessário compatibilidade com o enfrentamento da pandemia.
Nesse caso, proibir o passaporte da vacina seria ir contra a uma medida de combate à disseminação do vírus, que é garantida pelo STF.
O professor de Direito Constitucional da FDV Adriano Pedra avalia de forma diferente o caso. Ele não vê inconstitucionalidade no projeto, mas, assim como outros juristas, acredita que por contrariar uma norma estadual, será necessário acionar o Judiciário.
“Ao meu ver, não há inconstitucionalidade porque o projeto veda a exigibilidade do passaporte de vacinação e não a obrigatoriedade da vacina, que é o que a lei federal determina. Então, esse projeto deixa uma situação de embate entre município e Estado. É uma contradição jurídica porque se você cumpre a norma estadual, você descumpre a lei municipal”, ponderou.
Os professores pontuam que o questionamento da constitucionalidade do projeto só ocorre se ele virar lei. Isso pode acontecer caso o prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos) sancione a proposta ou se, ao vetar, tenha o veto derrubado pela Câmara Municipal.
Para Dalton Morais, há embasamento jurídico suficiente para que o chefe do Executivo vete o projeto. "Esse projeto pode nem virar lei se o prefeito de Vitória vetar por vício de constitucionalidade, que para mim, é flagrante nesse caso", pontuou.
Durante a sessão, a vereadora Camila Valadão pontuou que a cobrança do passaporte da vacina garantia uma liberdade coletiva da população e que era uma medida legítima já adotada em outros lugares.
“As restrições aos não vacinados são sim legítimas. E isso não é nenhuma novidade, nem em Vitória, nem no nosso país ou no mundo. O passaporte vacinal é mais uma das estratégias coletivas para a gente vencer a pandemia”, disse.
A vacinação no Brasil é obrigatória e está prevista em lei sancionada em 2020 pelo próprio presidente Jair Bolsonaro (PL). Segundo Adriano Pedra, o passaporte sanitário vem como uma consequência aplicada àqueles que descumprem essa obrigatoriedade, ou seja, optam por não se vacinar.
“É importante a gente entender que não existe direito de não se vacinar, a vacinação é obrigatória no Brasil. Essa obrigação está no artigo 3 da Lei 13.979, sancionada em 2020. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente fala, no artigo 14, que é obrigatória a vacinação de crianças em casos recomendados pelas autoridades sanitárias”, explica.
“O STF diz que as pessoas são obrigadas a se vacinar, mas não podem ser vacinadas à força. É a mesma coisa em relação ao uso de cinto de segurança. Existe a obrigação, mas você não pode amarrar uma pessoa e obrigá-la a usar o cinto. Mas você tem consequências em caso de descumprimento dessa obrigação. E, no caso da vacina, uma delas é a restrição de acesso a alguns locais”, pontuou.
Durante a sessão, houve excesso de afirmações falsas e falta de dados científicos que baseassem a proibição do passaporte da vacina. Muitos parlamentares colocaram em xeque a eficácia dos testes contra a Covid-19 e a aplicação do comprovante de vacinação para o controle da pandemia.
O vereador Armandinho Fontoura (Podemos) disse que a portaria do governo era ilegal. A afirmação, contudo, vai contra o que diz o próprio STF, segundo Gabriela Zancaner.
“Por a vacinação ser obrigatória, ela pode gerar consequências desfavoráveis a quem decidiu não se vacinar, como impedir que frequente alguns locais. Nesse sentido, a portaria do governo do Estado está correta, porque ela estabelece que pessoas que optaram por não se vacinar sofram eventuais restrições”, destaca.
Armandinho também afirmou que o passaporte era "sem nexo com a realidade" pelo fato de “vacinados também transmitirem Covid”. Realmente, pessoas vacinadas também podem transmitir a Covid-19, contudo, conforme explica a epidemiologista Ethel Maciel, as pessoas vacinadas tem menos replicação viral.
"Nós já sabemos que o vírus se multiplica em menor quantidade nas pessoas vacinadas e que essas elas transmitem menos a doença. Nesse sentido, a vacinação deve ser colocada como estratégia de controle de saúde pública para que os espaços públicos sejam mais seguros. O passaporte vacinal é fundamental para que nós possamos ter condicionalidade. As pessoas precisam entender que se elas não tiverem vacinadas, elas não vão poder frequentar esses locais porque elas representam um perigo para outras que não estão vacinadas, principalmente neste momento em que nós ainda temos o vírus circulando entre nós", destacou.
Já os vereadores Gilvan da Federal e Luiz Emanuel (Cidadania) colocaram em questão a liberdade individual que, segundo eles, estaria sendo suprimida com a exigência do passaporte.
Na tribuna, Gilvan classificou a medida como “arbitrariedade de um governo opressor” e afirmou estar defendendo o direito da população de ser livre. Contudo, não há liberdade absoluta em um contexto de pandemia em que há necessidade pública de vacinação, conforma explica o professor Dalton Morais.
Por meio de nota, a Prefeitura de Vitória informou que o prefeito Lorenzo Pazolini não se manifestaria, por enquanto, a respeito do projeto.
"Em respeito à independência e à autonomia dos Poderes, o Poder Executivo aguardará o encerramento do devido processo legislativo e o recebimento do mesmo para analisá-lo", disse a prefeitura.
Já o governo do Espírito Santo disse, por meio da Procuradoria Geral do Estado (PGE), que aguarda a tramitação do projeto para decidir se tomará ou não alguma iniciativa no que diz respeito à judicialização. O governo destacou que o passaporte da vacina é garantido pelo STF.
"A PGE ressalta que é necessário aguardar a tramitação do projeto de lei, que agora vai para sanção ou veto do prefeito. Mas, vale destacar que a Portaria da Secretaria da Saúde tem fundamento de validade em lei federal e que o STF já afirmou a possibilidade da cobrança do passaporte da vacina", disse em nota.
O QUE DIZ O MINISTÉRIO PÚBLICO
Por sua vez, o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) informou que, dentro do seu papel de fazer o controle da constitucionalidade das leis e atos normativos no âmbito estadual, fará a devida análise do texto legislativo e do conteúdo da norma caso o Projeto de Lei em questão seja sancionado, "adotando as medidas necessárias se presente alguma desconformidade com o ordenamento jurídico".
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta