Diante da crise provocada pelo novo coronavírus, poder público e iniciativa privada anunciam medidas para reduzir os impactos econômicos já sentidos em pouco mais de um mês e previstos para o futuro breve. Nas empresas, mais de um milhão de trabalhadores tiveram jornada e salário reduzidos no país após medida provisória editada pelo governo federal. No setor público, o mesmo tipo de corte para servidores, sobretudo efetivos, não é tão simples.
A Gazeta procurou especialistas para explicar se há a possibilidade e de que forma Estados e municípios podem reduzir salários dos servidores, já que eles possuem a garantia de irredutibilidade salarial, ou seja, de que seus salários não podem ser reduzidos.
Segundo eles, cortes nos salários e demissões de efetivos só são possíveis com mudanças na Constituição Federal. Cortes em verbas indenizatórias, no entanto, são aceitas. No caso dos comissionados, demissões são permitidas. Já para a redução salarial, é necessária a aprovação de projeto de lei. (Veja a explicação detalhada abaixo.)
Nesta segunda-feira (13), em entrevista coletiva, o governador Renato Casagrande (PSB) foi questionado sobre a possibilidade de reduzir os gastos com pessoal para o enfrentamento à crise econômica provocada pela pandemia, adotando medidas como reduzir seu próprio salário, o de seus secretários ou servidores comissionados.
Ele afirmou que nada está descartado. No Estado, já há iniciativas de vereadores e projetos de deputados estaduais para cortar os próprios salários. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) anunciou a suspensão da antecipação de pagamento do 13º salário e do terço de férias remuneradas dos servidores públicos estaduais, além de corte dos bônus por resultados.
Casagrande considerou que esta pode ser uma alternativa para que os servidores públicos não sejam os únicos imunes à crise econômica. Também mencionou outros Poderes, além do Executivo.
"Falar de outros Poderes é muito ruim para um chefe de um Poder, mas compreendo que todos terão que dar a sua dose de contribuição. Tem quem já está contribuindo porque está com prejuízo pelo comércio fechado, quem está perdendo o emprego, e a administração pública também terá que dar a sua contribuição, e tenho certeza que os demais Poderes também poderão dar essa contribuição", disse.
Outros Poderes são o Judiciário e o Legislativo. E o Ministério Público é outra instituição, independente.
Casagrande foi procurado novamente nesta terça-feira (14) para explicar se há algum planejamento de cortes no funcionalismo público. Por nota, a assessoria de imprensa dele negou: "O governador citou a possibilidade, porém está aguardando o impacto da receita".
ENTENDA O QUE PODE SER FEITO EM RELAÇÃO AOS SERVIDORES:
O professor da Fucape e mestre em Contabilidade João Eudes diz que cortes nos salários e demissões de efetivos só são possíveis com mudanças na Constituição Federal. Ela prevê, no artigo 37, inciso XV, que "o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis". Esta garantia foi inserida na Constituição para dar uma especial proteção, de caráter financeiro, contra eventuais ações arbitrárias do Estado.
Segundo Eudes, o que Estados, municípios e outros entes públicos podem fazer é retirar as verbas indenizatórias dos servidores, pois elas não são incorporadas à remuneração de forma definitiva. Auxílio-alimentação, auxílio-saúde, gratificações e bônus podem ser suspensos.
Sim. Para demitir, basta um ato administrativo do gestor responsável pela contratação, já que os cargos comissionados são de livre nomeação e exoneração. Para reduzir os salários desses funcionários, no entanto, é necessário que seja por meio de lei, alterando as tabelas ou os planos de cargos e salários de cada função. Servidores em designação temporária também podem ser demitidos.
A Prefeitura de Viana já tomou medidas deste tipo, nos últimos dias. O município reduziu a carga horária de trabalho de 40 para 30 horas de seus 380 servidores comissionados, além de 25% dos salários como medida para enfrentar a queda de receita por conta do coronavírus.
Não. Uma decisão do governador só afetaria os servidores do Poder Executivo. Cada um dos outros Poderes possui autonomia e independência administrativa e financeira, e cabe a eles gerir seus cargos. A única possibilidade de que sejam atingidos é em caso de alteração na Lei do Estatuto dos Servidores Públicos Estaduais.
Não. Segundo o professor João Eudes, apesar de que, em geral, os reajustes e aumentos salariais também beneficiem os inativos, não seria possível aplicar a eles algum corte de salários. Quando um servidor se aposenta, a remuneração deve obedecer aos princípios do direito adquirido e da irredutibilidade salarial.
No momento, isso não se aplica, de acordo com os especialistas. A Lei de Responsabilidade Fiscal dispõe que a despesa com pessoal não pode extrapolar determinados limites: de 49% da receita corrente líquida, no caso dos servidores do Executivo estadual, por exemplo.
Se um Estado gasta mais do que 49%, fica obrigado a adotar medidas de cortes, sendo, na sequência: reduzir pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança, exonerar servidores não estáveis, e, em última hipótese, exonerar servidores efetivos.
Como no momento os Estados e municípios já estão sofrendo com a queda de receita, é possível que os limites da LRF fiquem comprometidos. No entanto, o professor João Eudes pontua que a lei que decretou estado de calamidade pública federal até 31 de dezembro suspendeu a exigência do ajuste das despesas com pessoal. Assim, fica permitido algum eventual aumento.
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) também se posicionou contra a possibilidade de reduzir jornada e salário de servidores quando a despesa estourar o teto da receita corrente líquida, descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Este trecho da lei está suspenso desde 2002, por liminar.
O STF já formou maioria, em agosto de 2019, para declarar inconstitucional artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que prevê a redução da jornada e salários de servidores para que os órgãos se adéquem aos limites da lei. O argumento é que a Constituição prevê que uma lei não pode prejudicar o direito adquirido, e também que vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis.
O doutor em Direito Constitucional e advogado Cláudio Colnago entende que, apesar de o Supremo ter esse entendimento sobre a impossibilidade da redução de salários, é necessário avaliar a razoabilidade das possibilidades diante da situação de pandemia.
"Qual medida gera menor desgaste: demitir pessoas (mesmo que sejam comissionadas) ou reduzir remunerações? Em uma situação de pandemia, precisamos canalizar recursos para combate ao vírus e auxílio aos mais vulneráveis. A calamidade pública dá fundamentos para isso", argumenta.
Assim, ele avalia que é possível, sim, reduzir salários de servidores públicos, não somente os do Executivo, mas também os de outros Poderes, como o Judiciário, mas faz uma ressalva:
"Servidores do Judiciário e do Ministério Público podem ter salários reduzidos, a meu ver. Mas temos garantia a membros do Judiciário e MP para manter a respectiva independência [no exercício do cargo]." Dessa forma, juízes, desembargadores, promotores e procuradores de Justiça estariam livres da redução no contracheque.
O professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Bocaccio Piscitelli pontua que qualquer mudança para a redução de salários de servidores efetivos ou demissões seria politicamente manobra muito arriscada do governo, a enfrentar uma resistência grande dos servidores e acirrar os ânimos entre os Poderes. Ele considera que o governo tem outras medidas para adotar, com menor impacto do ponto de vista jurídico e do ponto de vista social.
"É muito menos impactante para a ordem jurídica e para a sociedade adiar o pagamento da dívida pública em vez de suspender o pagamento de salários de servidores, que são tão necessários neste momento, diz o professor. Por isso, seria inconstitucional porque fere um artigo e também porque fere a teoria da necessidade pública de urgência", disse.
Com o exemplo da esfera federal, ele também citou alguns órgãos que não podem sofrer redução neste momento: INSS, que cuida dos benefícios previdenciários e assistenciais; Receita Federal, que está participando do comitê de combate à pandemia; e Ministério da Cidadania, que vai comandar junto à Caixa o pagamento do auxílio dos informais, além do Bolsa Família; entre outros.
A Central do Servidor Pública/ES emitiu uma nota de repúdio sobre a possibilidade de redução salarial dos servidores. A Central afirma que os servidores não estão alheios aos problemas sociais.
"Repudia-se a ideia de redução salarial, pois omite a necessidade de adotar medidas eficientes que combatam distorções tais como: isenções fiscais bilionárias, pagamento de auxílios-moradia, nomeação de milhares de comissionados, suplementação orçamentária contínua conforme diário oficial; gastos em contratos de publicidade com dispensa de licitação; contratação de mais de 1 bilhão em investimentos mal avaliados e descontinuados. Por outro lado, há a possibilidade de solicitar autorização legislativa, em caso excepcional, para utilizar arrecadação de royalties na despesa de pessoal", afirma a nota.
Enquanto no serviço público a possibilidade ainda está distante, para a iniciativa privada o governo federal editou a medida provisória 936 que permite a redução proporcional de jornada e salário em até 70%, dependendo do caso, e a suspensão do contrato de trabalho. Em ambas as situações, com possibilidade de acordo individual uma inovação, pois a Constituição permite a redução de salário somente mediante acordo coletivo.
O governo estima que 70% do total de trabalhadores empregados via CLT, ou seja, com carteira de trabalho assinada atualmente, o que significa 24,5 milhões de pessoas, terão seus contratos de trabalho suspensos ou a jornada e o salário reduzidos. A suspensão do contrato é válida por até dois meses e a redução, por até três meses. O governo vai pagar um auxílio aos trabalhadores para minimizar a perda de renda.
A MP está em vigor desde 1º de abril, quando foi publicada no Diário Oficial da União. Ela tem validade de 120 dias. O Congresso agora vai analisar a MP e fazer possíveis modificações.
A equipe do Ministério da Economia do governo federal estava preparando nas últimas semanas uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propunha a redução de 25% da jornada e do salário dos servidores públicos federais. A minuta do texto permitia a redução até 2024, não somente durante a pandemia, e seria aplicada somente a quem recebesse acima de três salários mínimos.
A ideia inicial era que a PEC tivesse abrangência entre os servidores do Executivo, com possibilidade de extensão para Estados e municípios. No entanto, diante das resistências, por enquanto o ministro Paulo Guedes teria desistido de apresentar esse texto ao Congresso.
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