A sanção do pacote anticrime pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aceitando a criação do juiz de garantias, na última terça-feira (24), foi interpretada como mais uma atitude de contrariedade do presidente ao ministro da Justiça, Sergio Moro. O tema pode ser tratado inclusive como mais uma derrota do ex-juiz federal no governo, já que ele havia feito recomendações expressas e verbalizado publicamente, em mais de uma ocasião, que o ponto deveria ser vetado da nova lei, inclusive por questões práticas.
A insatisfação de Moro com a sanção mostrou-se evidente pelo fato de que desta vez ele chegou a divulgar uma nota criticando a decisão do presidente. Em outras ocasiões, o ministro silenciou, como por exemplo no episódio da exoneração da cientista política Ilona Szabó do cargo de suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Outro episódio foi a retirada do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Justiça.
O trabalho do ex-juiz também sofreu interferências quanto à Polícia Federal, como quando o presidente trocou o comando da corporação no Rio de Janeiro sem dar ciência à cúpula da instituição, ligada à pasta de Moro. "Quem manda sou eu", alfinetou Bolsonaro.
O juiz das garantias é uma nova figura criada no processo penal, e é ele que instrui o processo, recolhe provas e ouve testemunhas. Depois da denúncia do Ministério Público, a ação vai para a mão de outro magistrado.
Em sua nota sobre o pacote anticrime, Moro disse que foi contra a criação do juiz de garantias, mas que o texto final "contém avanços". "O Ministério da Justiça e Segurança Pública se posicionou pelo veto ao juiz de garantias, principalmente, porque não foi esclarecido como o instituto vai funcionar nas comarcas com apenas um juiz (40 por cento do total); e também se valeria para processos pendentes e para os tribunais superiores, além de outros problemas", diz Moro na nota.
No Twitter, Bolsonaro buscou despistar algum tipo de mal-estar. "Parabéns a Sergio Moro, que, depois da votação e sanção presidencial, obteve avanços contra o crime. Só avançamos também porque recuamos em alguns pontos. Críticas, ou não, cabem a você [seguidor], levando-se em conta seu grau de entendimento de como funcionam o Legislativo e o Executivo", escreveu o presidente.
Além de manter o juiz de garantia, o presidente vetou outros 25 dispositivos aprovados no Congresso. A nova lei entra em vigor no dia 23 de janeiro de 2020. Neste dia, começam a valer os pontos sancionados. Os vetados, se derrubados pelo Congresso, entram em vigor posteriormente.
De acordo com a coluna Painel, da Folha de S. Paulo, parlamentares avaliaram a decisão de Bolsonaro de manter a figura do juiz de garantias no pacote anticrime não apenas como uma derrota de Sergio Moro, contrário à proposta, mas como um gesto do presidente ao comandante da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e a uma ala do Supremo. A manutenção do trecho também foi atribuída a uma escolha pessoal de Bolsonaro, que já reclamou da atuação de juízes e que agora vê o filho, Flávio Bolsonaro, na mira de uma investigação. Assim, ele trabalharia para evitar abusos.
Contar com Moro no governo é um verdadeiro desafio para o presidente Jair Bolsonaro, já que ele ajudou o presidente a obter apoio de alas que ele talvez não teria, como a dos antipetistas e a dos lavajatistas, analisa o cientista político João Gualberto Vasconcellos. Agora, o presidente precisa conter a expressividade do ex-juiz.
"A vinda de Moro [para o governo] foi muito melhor para Bolsonaro do que para ele, que já tinha uma imagem garantida. Agora, o presidente precisa manejá-lo de forma que não o deixe pequeno demais, nem que se torne muito grande. A manutenção de Moro é importante para o governo, para a bolha do presidente e para seu ego. Então, um dia ele desqualifica, em outro prestigia", afirma.
Para Gualberto, o ato de Bolsonaro pode sim ser visto como uma desqualificação daquele que deveria ser seu principal conselheiro na área de Justiça.
"Bolsonaro é um personagem que se movimenta de forma completamente diferente dos políticos tradicionais, tem um gestual que confunde muito, faz movimentos confusos. Enquanto os outros atores se preservam, têm poucos embates públicos, e fazem acertos no privado, ele faz o contrário. Moro ganhou visibilidade na Lava Jato e exercia todas as funções normais de um juiz, da instrução até o julgamento. Essa sanção pode passar um recado de que o presidente é contra a atuação de Moro, ao permitir a criação do juiz das garantias."
Eventuais impactos desta derrota, como um rompimento entre os dois, ainda não parece algo provável, mas a situação estaria sob o controle de Moro, na avaliação do cientista político e professor da Mackenzie, Rodrigo Prando.
"A relação entre eles me parece que no próximo ano fica no patamar que esteve este ano, que é de desconfiança por parte do presidente em relação a Moro. Ele não possui a mesma tranquilidade e confiança que o ministro [da Economia] Paulo Guedes, por exemplo, pois é visto por bolsonaristas como um concorrente para 2022. Ao longo desse ano, o presidente desautorizou o ministro algumas vezes, reforçou que a última palavra era dele, e submeteu Moro a até algumas humilhações", comenta.
Para ele, a aliança ainda pode surpreender em 2020. "Não dá para entender se Moro quer ficar nessa condição, almejando uma vaga no Supremo, ou se ele vislumbra um caminho solo, se afastando de Bolsonaro. Muitos partidos já deixaram claro que gostariam de tê-lo em seus quadros. Será uma relação ainda bastante tensa. Vai depender de quanto ele terá de paciência e inteligência política para suportar e responder aquilo que o presidente lhe endereçar", pontua.
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