As divergências nas decisões tomadas na área da saúde pública protagonizadas pelos gestores do governo federal, Estados e municípios durante a pandemia do novo coronavírus deixaram evidentes as fragilidades existentes no modelo adotado pelo Brasil, que tem como um dos princípios a descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Isso porque as ações e os recursos públicos aplicados na Saúde devem vir de todas as esferas de governo: pelos municípios, Estados e governo federal. Os entes federativos dividem e compartilham as responsabilidades da assistência à saúde, além se terem a obrigação, juntos, de financiar a área, apesar das diferentes capacidades de cada um.
Como a tarefa de execução do atendimento à saúde cabe aos Estados e municípios, governadores e prefeitos tem sido os alvos mais próximos da pressão para as políticas públicas acontecerem. As prefeituras são responsáveis, prioritariamente, pelo atendimento na atenção básica, prestado nas unidades de saúde. Os Estados, por sua vez, pelos atendimentos de média e alta complexidade, nos hospitais e clínicas de especialidades.
Já a União é cobrada, principalmente, por coordenar e fornecer os recursos para a saúde. São poucas as ações executadas diretamente pelo governo federal na saúde, ficando restritas, em geral, a atendimentos nos hospitais federais e ao trabalho nos laboratórios e nas pesquisas.
Especialistas pontuam que é importante compreender as competências e as limitações de cada uma das esferas de governo, inclusive para cobrá-los pelas respostas dadas durante a pandemia. Entenda como é esta divisão do SUS:
O Sistema Único de Saúde estrutura os níveis de atenção em básica, média e alta complexidade. Nessa organização, a Atenção Básica foi definida como a porta de entrada preferencial do sistema, que deve ocorrer nos municípios. Com o atendimento nas unidades de saúde, que são geridas pelas prefeituras, a atenção básica prevê um conjunto de ações que engloba promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças. Para os casos de urgência ou emergência, as cidades possuem as Unidades de Pronto-Atendimento (UPA).
Também cabe ao município uma parte das ações de Vigilância em Saúde, realizando a notificação de doenças compulsórias, a garantia a exames laboratoriais para o diagnóstico de doenças, o monitoramento da qualidade da água para o consumo humano, a coordenação e execução das ações de campanhas de vacinações, e a vigilância epidemiológica.
A partir de um primeiro atendimento nas unidades de saúde, o cidadão pode ser encaminhado para os outros serviços de maior complexidade da saúde pública, como clínicas especializadas e hospitais, que são mantidos pelo Estado.
Na prática, a divisão não é tão exata, pois algumas prefeituras possuem hospitais municipais, como o Hospital Geral de Linhares (HGL), por exemplo, e os municípios também disponibilizam atendimento com especialistas, como ortopedistas, oftalmologistas e ginecologistas, por exemplo.
O presidente da Associação dos Municípios do Espírito Santo (Amunes), prefeito de Viana Gilson Daniel, avalia que os municípios ficam com uma parte pesada da carga de atendimentos à saúde, superiores às suas capacidades de pagar. A legislação exige que os municípios apliquem o limite mínimo de 15% da soma dos recursos de impostos e transferências em ações em serviços públicos de saúde.
"Sabemos que é no município que a vida das pessoas acontece, mas eles são quem tem menos recursos em relação às obrigações. Todos os municípios gastam acima do patamar de 15%, porque a demanda por serviços é muito superior ao que conseguimos ofertar. Também recebemos transferências federais de programas específicos, como o 'Saúde da Família', mas muito aquém do necessário. Para implantar, contratar médicos, enfermeiros, o município sempre precisa complementar", argumenta.
No contexto de pandemia, está cabendo aos municípios os atendimentos nas unidades de saúde, UPAs, e a vigilância. Gilson Daniel relata que as cidades enfrentam dificuldades para suportar esta demanda.
"Já é difícil para os municípios darem conta da situação normal, com as doenças comuns, sem pandemia, pois as estruturas não dão conta. Agora está ainda mais complexo. Já estamos combatendo o vírus há várias semanas, e os recursos federais ainda não chegaram. A nossa receita não suporta todos os investimentos que o coronavírus exige", afirma.
Em 2019, de acordo com o sistema CidadES, do Tribunal de Contas do Estado (TCES), os municípios aplicaram R$ 1,43 bilhão em saúde pública, e todos destinaram mais do que os 15% exigidos pela lei. Em média, cada cidade aplicou 22,76% de sua receita. Os municípios de Vargem Alta e de Conceição da Barra foram os que registraram os maiores investimentos, proporcionalmente à sua receita, com 38,1% e 34,4% respectivamente. A aplicação pelos municípios foi, em média, de R$ 356,68 per capita.
Em uma hierarquia entre os níveis de atenção baixa, média e alta complexidade , os governos estaduais são encarregados de atender estas duas últimas, fornecendo especialidades médicas e exames de maior precisão, internações, serviços de atendimento móvel, com o Samu, entre outras funções. No Espírito Santo, há 14 hospitais estaduais atualmente.
Os Estados também são responsáveis por uma coordenação da política de saúde, intermediando a relação entre os municípios e avaliando o funcionamento da rede regionalizada. Assim, são feitas subdivisões em regiões de saúde, nas quais um município-pólo funciona como referência para os demais.
Quanto aos recursos, é obrigatório aplicar o limite mínimo de 12% da receita nos serviços de saúde. Em 2019, o Espírito Santo aplicou 17,17%. A Saúde é a segunda maior despesa do Executivo, ficando atrás apenas da Previdência Social.
O secretário de Estado da Saúde, Nésio Fernandes, contextualiza que o Brasil convive com uma tripla carga de doenças, que vão simultaneamente estressando o sistema de saúde: as doenças infectocontagiosas transmissíveis (como a tuberculose, hepatite, diarréia), as doenças crônicas degenerativas (diabetes, hipertensão) e as causas externas de enfermidades, com a violência e acidentes. Com todas essas demandas necessitando de assistência, somadas agora à pandemia, o sistema está sendo colocado à prova.
"A pandemia testa todo o funcionamento do sistema, desde as ações de prevenção, proteção, de atenção primária, a rede de urgência e emergência, a rede hospitalar, a assistência farmacêutica, os laboratórios de saúde pública. Todas as fragilidades assumem proporções maiores. Aqueles municípios ou estados que possuíam atenção primária e vigilâncias frágeis, assim como estados que tenham sistema de gestão ineficiente, se tornaram evidentes".
Ele avalia que o posicionamento do governo federal, com divergências entre Ministério da Saúde e o presidente da República, deu protagonismo aos estados da condução do processo no país.
"Coube aos estados legitimarem as posições do Ministério da Saúde, reforçar as decisões coerentes da pandemia. A estrutura federativa do país e do SUS protegeu o Brasil, permitindo que decisões importantes sejam tomadas por parte dos governadores e prefeitos", afirma.
O secretário também relatou dificuldades no recebimento dos aportes do governo federal. Ele relata que em 2019, do total de recursos da área de saúde no Espírito Santo, só 23% vieram da União, e o restante foi do próprio caixa. Desde o início da pandemia, o Ministério da Saúde já anunciou liberações de R$ 8 bilhões, e posteriormente de mais R$ 4 bilhões para Estados e municípios, mas nem todo esse recurso já chegou aos cofres.
Por ser o maior arrecadador de impostos, a União é o principal financiador da saúde pública no país. O Ministério da Saúde formula políticas nacionais de saúde, mas em geral, não realiza as ações. Para a realização dos projetos, depende dos estados, municípios, ONGs, fundações e empresas. Também tem a função de planejar, elaborar normas, avaliar e utilizar instrumentos para o controle do SUS.
A obrigação da União era de que no mínimo 15% do orçamento fosse para a pasta da saúde, até ocorrer a aprovação do "Teto de Gastos", em 2017. A partir daí, os gastos do governo foram limitados ao valor utilizado ano anterior, reajustado somente pela inflação acumulada. Em 2019, os recursos destinados à área representaram 13,54%.
O Ministério da Saúde nega que tenha diminuído a verba empregada em ações e serviços públicos de saúde.
"Em 2019, a participação da União (43% R$ 122,2 bilhões) continuou representando maior porcentual de gastos em saúde do que o gasto pelos Estados (27% R$ 75,8 bilhões) e o conjunto dos municípios (30% R$ 84,8 bilhões). Para este ano, o orçamento atual do Ministério da Saúde em ações e serviços públicos de saúde é de R$ 135,9 bilhões, sendo R$ 10,8 bilhões superior ao orçamento de 2019", disse, em nota.
Para estudiosos em saúde pública, tem ficado para os Estados a posição de maior pressão em oferecer uma resposta e enfrentar a pandemia. Isso porque, além de serem executores de ações, cabe a eles o cuidado dos pacientes de maior gravidade, e falta coordenação pelo governo federal.
Para a doutora em Bioética e professora da FDV, Elda Bussinguer, a participação da União com 23% dos recursos em saúde, no Espírito Santo, já é um nível baixo, mesmo em um contexto fora da pandemia. Nela, deve-se exigir um aporte muito mais expressivo.
"Se os Estados não receberem ajuda, ficam em situação gravíssima. Legislações tem que ser feitas para viabilizar a transferência desses recursos da União. Ela tem que se responsabilizar por compra de equipamentos, financiar hospitais de campanha. O gerenciamento desses recursos tem que estar prioritariamente no Estado, que controla a rede hospitalar. E ele tem que ter sensibilidade para entender o papel da atenção básica, e que transferir uma parcela para os municípios".
Ela considera que no país já há um subfinanciamento crônico na área de saúde, que foi agravado pela PEC do Teto dos Gastos. "A União centralizou recursos e hoje, está demorando demais a liberar, e está fazendo política com os recursos. Os estados e municípios não tem capacidade de tocar esse processo sozinhos".
O doutor em sociologia, especialista na área de Saúde Pública e professor da UNB Vicente de Paula Faleiros acrescenta como problema a falta de coordenação federal.
"Era necessário ao menos um comitê de crise, envolvendo todas as esferas de governo. Há fissuras para construir uma unidade, isso cria um problema de enfrentamento, e os recursos continuam pendentes. A atenção básica precisa ser integrada em uma força tarefa mais especializada. Os Estados estão em uma posição de mais pressão, porque a execução é deles. Se as medidas fracassam, o governador é que assume uma responsabilidade maior", avalia.
Para avançar nesse compartilhamento de competências, ele cita como uma boa iniciativa um projeto no Senado, que cria a "decisão coordenada federativa" para ações em saúde em situações de emergência, como a pandemia do coronavírus.
O texto regulamenta inciso do artigo 23 da Constituição que trata da competência de cada ente e prevê que as ações de enfrentamento à doença sejam definidas em votação com representantes dos governos federal, estadual e municipais. De autoria do senador Antonio Anastasia (PSD-MG), o projeto já recebeu o apoio de ministros do STF e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).
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