Imagine um governador passar uma noite escondido dentro da Assembleia Legislativa porque seus adversários políticos montaram uma barricada com sacos de grãos na porta da Casa e, aos tiros, ameaçaram ir até as últimas consequências para levá-lo preso. Para melhorar a história, pense que a revolta tem como seus líderes dois irmãos, ex-governadores do Estado e membros do mesmo partido. Parece enredo de filme, mas foi isso que aconteceu no Espírito Santo há 100 anos.
O cenário disso tudo foi a Praça Pedro Palácios hoje Praça João Clímaco que fica entre o Palácio Anchieta e a antiga sede da Assembleia Legislativa do Estado (prédio conhecido hoje como Palácio Sônia Cabral). Os dois irmãos que encabeçam este conflito são Jerônimo Monteiro, que governou o Estado entre 1908 e 1912, e Bernadino Monteiro, que foi eleito em 1916 e tentava, em 1920, transmitir o cargo ao seu aliado Nestor Gomes, que iniciara sua carreira como contador da família Monteiro.
No dia da posse, Bernadino e Nestor não conseguiram sair do Palácio Domingos Martins, onde funcionava o Legislativo, após a cerimônia. Um grupo de 222 policiais estaduais se rebelou contra o presidente do Estado como o governador era chamado na época e ficaram ao lado de Jerônimo. Armados, eles atiraram contra o edifício e ameaçaram levar Nestor, recém empossado, preso. Guardas do palácio e alguns jagunços de coronéis que apoiavam Bernadino impediram a prisão.
O grupo de Nestor foi até uma mercearia na Cidade Alta e comprou sacos de arroz e feijão para montar uma barricada e evitar que os revolucionários tomassem o palácio. Bernadino conseguiu fugir, mas Nestor ficou escondido em uma sala. Enquanto guardas atiravam das janelas do prédio histórico, jeronimistas se escondiam atrás das árvores para tentar se aproximar. O tiroteio, segundo consta na biografia do ex-governador Carlos Lindenberg que era sobrinho de Jerônimo e Bernadino durou 10 horas.
"Foi, sem dúvidas, um dos momentos mais conturbados da política capixaba. Por mais que fosse uma época da política de coronéis e que já havia revoltas armadas em outros Estados, o caso teve repercussão nacional e só foi resolvido quando o presidente da República, Epitácio Pessoa, interveio. É um caso marcante, mas não podemos analisar com os olhos de hoje. Naquela época, a política era totalmente diferente", explica a historiadora Nara Saletto, que pesquisou o tema.
O início da confusão se dá ainda na convenção do Partido Republicano do Espírito Santo (PRES), naquele período o único partido do Estado. Jerônimo, na época senador, queria indicar para as eleições Abner Mourão. Porém, Bernadino queria colocar o sobrinho de ambos, Henrique de Novaes, para disputar o cargo. Sem chegar a um consenso, o presidente do Estado indicou Nestor Gomes para o pleito.
Apesar do aparente consenso, Bernadino não gostou da retaliação ao seu indicado e passou a demitir os amigos de Jerônimo do serviço público. O senador se irritou, parou de falar com o irmão e indicou Abner Mourão novamente. Nas eleições, Nestor ganhou com facilidade, mas Jerônimo guardava um trunfo. Como na época o presidente do Estado precisava ser empossado pela Assembleia, Jerônimo, que tinha a maioria dos deputados, não reconheceu a vitória de Nestor e dividiu, literalmente, a assembleia.
O Estado passou a ter duas Assembleias. O grupo dos 12 deputados estaduais ligados a Bernadino se reunia no Palácio Domingos Martins, sede oficial do Legislativo. Já a assembleia jeronimista, com 13 deputados, fazia suas sessões na casa de um comerciante de carnes de Vitória. Logo, o local foi apelidado de Palácio das Linguiças.
A confusão começa no dia 23 de maio de 1920, data em que Nestor iria tomar posse. Como já se sabia que um grupo de 222 policiais planejava a revolta, a ideia era que a cerimônia de posse fosse rápida. Ainda assim, jeronimistas e bernadinistas já se concentravam na frente da Assembleia para acompanhar o desfecho.
Jerônimo e Bernadino não tinham diferenças ideológicas, era mais uma disputa de poder. Apesar disso, o povo tomou partido. Foi uma briga que repercutiu por décadas, destaca o historiador Fernando Achiamé.
A cerimônia se iniciou às 13h. A conspiração contra Nestor previa que na hora do posse ele seria levado preso para o quartel da polícia, sem tiroteios. Não se sabe de onde surgiram os primeiros disparos, mas em poucos minutos, a entrada do Legislativo virou uma praça de guerra. Jerônimo, que morava próximo do local, ouviu de casa os primeiros tiros. O capitão de polícia da época, que estava entre os rebelados, foi quem deu a notícia a ele. Lembre-se que quem está lá dentro é meu irmão, advertiu Jerônimo, assustado com a proporção que o conflito tomou.
Depois de passar a noite preso dentro da Assembleia, Nestor Gomes conseguiu sair no dia seguinte. A Casa, no entanto, continuou sitiada por dois meses. Servidores aproveitaram o conflito e declararam greve. O caso só foi resolvido após a intervenção federal do então presidente da República, Epitácio Pessoa. Foi o Congresso Nacional que reconheceu Nestor como ganhador das eleições. Após a decisão ser aprovada no Senado, em 11 de julho de 1920, Nestor iniciou seu mandato.
Foi uma época de total instabilidade. Um grupo cortava a luz do outro. A Cidade Alta, durante esses dois meses, ficou totalmente sitiada. Quem apoiava Jerônimo atravessava a cidade por baixo, quem apoiava Bernadino, por cima. Jerônimo acabou fundando outro partido, mas, com o tempo foi perdendo o prestígio popular. Foi uma briga das elite, da oligarquia. A família Monteiro continuou ditando a política durante toda aquela década, até 1930, com o Estado Novo, quando o Espírito Santo passou a ser governado por um interventor de fora, João Punaro Bley, explica Achiamé.
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