O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) declarou inconstitucional, na tarde desta quinta-feira (27), o decreto aprovado pela Assembleia Legislativa que suspendeu a integração de 27 comarcas e, com isso, a extinção de fóruns, no Estado. No entendimento dos desembargadores, houve invasão da competência do Judiciário.
A decisão é liminar, ou seja, provisória, e foi tomada à unanimidade pelos magistrados após a procuradora-geral de Justiça do Ministério Público Estadual (MPES), Luciana Gomes Ferreira, apresentar uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) na Corte.
A votação ocorreu durante sessão virtual. O tema não estava na pauta disponibilizada previamente pelo TJES, mas foi incluído no fim da reunião. Apesar de ter sido notificada, a Assembleia Legislativa não enviou um representante.
Durante o voto, o relator, desembargador Fernando Bravin, disse que a autonomia é garantida ao Judiciário pela Constituição Federal. Ele afirmou que o projeto aprovado pelos deputados era inconstitucional por vício de iniciativa e por vício material, pela violação da separação dos Poderes.
O relator frisou que não há na lei previsão para que um decreto legislativo possa anular atos normativos do Judiciário, apenas do Executivo.
O desembargador Bravin também mencionou que o decreto não aponta nenhuma irregularidade cometida pelo TJES com a integração de comarcas. Ele deferiu a medida cautelar com efeito retroativo, ou seja, referente ao dia 26 de maio, quando houve aprovação do projeto na Assembleia.
"O decreto da Augusta Assembleia Legislativa do Espírito Santo não sustenta qualquer consideração sob hipotética ou eventual irregularidade praticada pelo Poder Judiciário do Estado do Espírito, nem mesmo possíveis extrapolações sobre atribuições no âmbito da organização judiciária do nosso Estado", afirmou.
"Voto pelo deferimento da medida cautelar para suspender a eficácia do decreto legislativo 01, de 26 de maio de 2021, com efeitos retroativos."
Os magistrados da Corte aproveitaram o momento do voto para defender a independência do TJES e criticar a postura da Assembleia Legislativa. O desembargador Manoel Alves Rabelo ironizou o decreto e disse que o Legislativo estava tentando assumir um papel que só cabia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que é o órgão controlador do Judiciário.
Já o desembargador Ney Batista Coutinho criticou os interesses políticos que estariam em torno da discussão sobre a integração de comarcas e destacou que o Tribunal de Justiça age de acordo com a lei. Ele disse que o diálogo é necessário, mas que não cabe à sociedade discutir como o Poder Judiciário como ele deve agir .
"Nós não podemos abrir o Poder Judiciário para fique à mercê da própria política ou de interesses políticos e de interesses da própria sociedade para discutir como o Poder Judiciário deve agir. O Poder Judiciário é independente assim como são os outros Poderes e, dentro desse raciocínio, ele não precisa estar ouvindo os outros Poderes para desenvolver um trabalho em prol da sociedade. Ele segue as leis, ele obedece as leis, somente a isso", destacou.
Procurada pela reportagem para se manifestar, a Assembleia Legislativa, por meio da assessoria da presidência da Casa, informou apenas que não foi intimada sobre a decisão.
O desembargador Carlos Simões Fonseca, durante o voto, pediu respeito ao Judiciário e às decisões que são tomadas pela Corte. O magistrado ressaltou que a decisão sobre a integração cabe ao CNJ e não à Assembleia Legislativa, e acusou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-Seccional Espírito Santo (OAB-ES), José Carlos Rizk Filho, de fazer alarde da situação.
"Todas as sugestões apresentadas pela Ordem dos Advogadas do Brasil constam nos anexos. Então, não venham me dizer que a Ordem dos Advogados foi simplesmente representada pelo seu presidente, que ingressou com ação no Conselho Nacional de Justiça e está fazendo todo esse alarde."
O único magistrado que não votou foi o desembargador Fábio Clem, que se declarou suspeito na votação e se absteve. Clem afirmou que tinha um entendimento político e que divergia dos outros desembargadores em relação à integração de comarcas.
Ele criticou a atitude do Judiciário e disse que a aprovação do decreto na Assembleia, que estava sendo julgado, ocorreu pelo "desprezo ao diálogo" entre os Poderes.
"Todos temos o direito de pensar o que quisermos sobre a posição da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, mas para mim o recado está dado e em minha percepção produz efeito deletério para imagem do Judiciário capixaba, fruto do desprezo ao diálogo que a questão foi tratada", avaliou.
À unanimidade de votos, a Corte deferiu a liminar que suspende o decreto legislativo aprovado pela Assembleia. A decisão é provisória e o mérito da matéria ainda vai ser julgado. De toda forma, a decisão do Pleno não interfere no julgamento que está em andamento no CNJ e deve ser retomado na próxima terça-feira (1º).
O presidente da OAB-ES, José Carlos Rizk Filho, lamentou a decisão do Pleno, disse que a medida "ameaça levar retrocesso e enorme prejuízo aos jurisdicionados em todo o Estado" e elogiou o posicionamento do desembargador Fábio Clem.
"Sabemos que muitos municípios sofrerão muito com esse retrocesso que o Tribunal quer impor. O magistrado (desembargador Fabio Clem) foi a voz equilibrada e sensata da sessão, deixando clara a sua insatisfação com o posicionamento do próprio Judiciário", disse Rizk.
A integração de 27 comarcas no Espírito Santo foi aprovada em maio de 2020 pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo. A decisão segue uma recomendação do CNJ para reduzir gastos e manter a Corte no equilíbrio fiscal.
No entanto, a medida adotada pelo Judiciário provocou reações na sociedade civil. Prefeitos das cidades onde os fóruns serão extintos, deputados e a OAB-ES se manifestaram contra a decisão.
Alegando erros nos estudos que embasaram a integração de comarcas e prejuízos à população, a Ordem entrou uma ação no CNJ pedindo a suspensão da decisão do TJES. O pedido foi atendido em junho de 2020, quando o CNJ concedeu uma medida liminar. Desde então, a unificação de 27 comarcas está suspensa provisoriamente no Estado, até que o julgamento do mérito da matéria seja retomado.
Até o momento, apenas a relatora do procedimento, conselheira Ivana Farina, votou. Ela foi favorável à integração de comarcas e justificou que não há ilegalidade na medida adotada pelo tribunal. No ano passado, a procuradora de Justiça foi a responsável pela decisão que suspendeu a medida do TJES. Ela alegou que, na época, não teve acesso aos estudos realizados pela Corte.
A integração de comarcas só pode ser adotada pela Corte graças à Assembleia Legislativa que, em agosto de 2014, aprovou um projeto de lei complementar apresentado pelo então presidente do Tribunal de Justiça, o desembargador Sergio Bizzotto, para reestruturar o Poder Judiciário.
O projeto previa a possibilidade de unificação de duas ou mais comarcas, para atender "aos objetivos de otimização dos gastos, aprimoramento da gestão e incremento de produtividade de juízes".
Na tentativa de reverter essa situação, e pressionados por prefeitos e pela população, deputados estaduais passaram a atuar de forma mais incisiva no assunto. Nos bastidores, a movimentação foi vista como articulação de olho nas eleições de 2022, já que muitos parlamentares possuem bases eleitorais no interior, em cidades que vão ser afetadas pela extinção de fóruns.
No dia 12 de maio, o deputado estadual Theodorico Ferraço (DEM) apresentou um projeto de decreto legislativo suspendendo as resoluções do Tribunal de Justiça.
A proposta foi protocolada no Legislativo dias depois de o Conselho Nacional de Justiça retomar o julgamento das comarcas e acompanhou uma série de manifestações de outros parlamentares, que passaram a agir contra a extinção de fóruns apenas neste ano.
A medida foi votada em plenário na última segunda-feira (24) e foi aprovada. Em uma sessão conturbada, o voto do relator do projeto da Comissão de Constituição e Justiça, deputado Marcelo Santos (Podemos), deixou os colegas confusos.
Marcelo afirmou que o decreto era inconstitucional, já que a lei não prevê que o Legislativo possa suspender uma decisão do Judiciário por iniciativa própria. Apesar disso, o parlamentar deu parecer pela constitucionalidade, alegando ser uma decisão política.
Membros da Comissão de Justiça chegaram a pedir um parecer da Procuradoria-Geral da Casa para saber se o voto de Marcelo era válido, já que apresentava contradições. A solução encontrada foi não anexar o relatório apresentado pelo relator e considerar apenas o parecer oral. Assim, o projeto tramitou e pôde ser aprovado.
O deputado Bruno Lamas (PSB) foi o único a votar contra. Na ocasião, ele alertou sobre a inconstitucionalidade do decreto e disse que seria derrubado na Justiça.
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