Victor faz em cinco segundos o que servidores do Supremo Tribunal Federal (STF) levariam trinta minutos para concluir. Não que Victor seja uma pessoa muito mais produtiva. É que ele não é uma pessoa.
A iniciativa de inteligência artificial do Supremo, lançada no ano passado, é uma das ferramentas tecnológicas que agilizam procedimentos, trâmites e vão além no mundo do Direito. Embora boa parte dos processos ainda consista em pilhas de papel, o futuro já chegou. E não apenas aos tribunais, mas também aos escritórios de advocacia.
Empresas, chamadas de lawtechs, oferecem diversos serviços. "Foi mapeado por uma dessas empresas que se o advogado usar a palavra 'descaso', a tendência é a indenização (determinada pelo juiz num processo) ser maior, só por conta de uma palavra na petição", conta o advogado capixaba Luiz Cláudio Allemand, que já integrou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Menos trabalho para funcionários ou maiores indenizações para clientes de específicos escritórios podem não parecer grandes avanços. Mas não se trata apenas disso.
Servidores e advogados, liberados de serviços repetitivos, que podem ser executados por robôs e outros sistemas, podem prestar um melhor atendimento. E mais rapidamente. Isso num país em que a lentidão do Judiciário, abarrotado de processos e burocracia, é a regra.
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Os robôs aqui tratados não são como os do desenho animado "Os Jetsons", são programas de computador. E tampouco integram cenário de ficção científica.
O CNJ até já criou um laboratório de inteligência artificial (IA) para cuidar do tema e incentivar a adoção dessas tecnologias pelos tribunais.
Na prática, a IA pode levantar estatísticas, aprender sozinha determinados procedimentos e sugerir soluções. No que se refere à produção e à sistematização de dados, além de realizar funções com mais agilidade, certamente o faz com mais precisão que humanos.
AMEAÇA
E pode soar como ameaça ou ao menos como alerta a quem se limita a tais funções. "Tem um escritório em São Paulo que tinha 3,8 mil advogados, isso tem uns quatro anos. Ele hoje faz a mesma coisa com 800, usando tecnologia. Podemos fazer acompanhamento de processo e pesquisa mais elaborada em período muito mais curto. O ser humano não vai ser reconhecido pelo conhecimento que adquiriu pelo tempo e sim pela pergunta correta que vai fazer", resume Allemand, ele próprio, advogado tributarista, um entusiasta dos novos meios.
"Eu uso sistema de predição, de busca, de avaliação de causas, de êxito, mas de forma incipiente", pontua.
Predição é o anúncio antecipado do que está para acontecer. É uma palavra comum quando o assunto é inteligência artificial aplicada ao Direito.
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A ideia, para os advogados, é prever qual deve ser o posicionamento dos magistrados em determinados casos, o que permite calcular a chance de sucesso ou calibrar a estratégia. E isso se faz analisando as decisões já tomadas, que são publicadas em diários eletrônicos. São muitas, seria tarefa inglória para quem é de carne e osso.
Mas isso virou problema na França. Lá, foi criada uma lei para colocar na cadeia quem tornar públicas análises feitas a partir de decisões de juízes. Já nos Estados Unidos, por exemplo, a prática é permitida.
Na Letônia, já há juízes robôs. "A Letônia já está usando juízes robôs, como auxiliares. Faz pesquisa, modelo de redação, mas o juiz que vai autorizar, validar ou não", ressalta Allemand.
"TRATO HUMANIZADO"
No Brasil, há quem faça alertas sobre uma possível prevalência da tecnologia ante as capacidades humanas. "O olhar do juiz jamais deverá ser dispensado pela inteligência artificial. É nesses momentos de transformação, como o nosso, que devemos cobrar do juiz que ele saiba separar os processos e dar um trato humanizado, e não se ater a essa euforia da inteligência artificial", afirmou a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, em palestra em Vitória na última sexta-feira.
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"Cada processo é diferente, ainda que repetitivo. A inteligência artificial no processo é perigosa porque pode desconsiderar fatos típicos daquele caso específico", avalia o advogado Aroldo Limonge. Mas ele também louva medidas como a digitalização dos processos e procedimentos. "Tem ajudado muito."
"O TRABALHO DO JUIZ É JULGAR"
Palavras como predição, machine learning e rede neural são pronunciadas com naturalidade pelo desembargador Samuel Meira Brasil Jr, corregedor-geral do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).
Com mestrado em Ciência da Computação, ele está à frente do CorE-IA (Centro da Corregedoria Estadual de Inteligência Artificial), criado, oficialmente, em maio. O objetivo é apresentar, até o final do ano, uma iniciativa em inteligência artificial a ser aplicada no Judiciário Estadual.
Ajudar os juízes a gerenciar procedimentos e o tempo de trabalho seria apenas uma das possibilidades tecnológicas.
Também integra a lista a identificação de casos repetitivos que podem ser julgados simultaneamente e muito mais.
Cite, por favor, um exemplo prático em que essa inteligência artificial poderia ser usada.
No tribunal de Minas há uma iniciativa de utilização de um programa para identificar todas as demandas repetitivas. Ainda que as petições feitas pelos advogados sejam diferentes, com uma redação diferente, o programa identifica a causa de pedir e o pedido e consegue encontrar demandas repetitivas. Essas demandas são reunidas para que sejam julgadas simultaneamente.
Com isso, conseguimos segurança jurídica porque não se corre o risco de decisões conflitantes, e conseguimos agilidade porque não há necessidade de esperar meses e até anos para julgar demandas repetitivas.
Hoje a identificação de quais processos tratam da mesma coisa é "no olho", manualmente, e puxando pela memória? Pode ter coisa que está ficando de fora.
Pode, perfeitamente. Até mesmo porque o ser humano é falho. Todos nós somos sujeitos a erro. Mesmo com a supervisão de um ser humano uma análise dessa pode escapar, que não seja enquadrado como sendo um caso repetitivo. A partir do momento que nós temos um algoritmo que faça essa verificação com um grau de aproximação nós vamos ter uma velocidade na identificação desses processos e com uma acurácia muito superior.
E existem algumas experiências no exterior de utilização de inteligência artificial preditiva.É uma linha que estamos trabalhando para desenvolver na corregedoria.
Como é isso?
A partir da identificação de alguns padrões é possível dizer que o resultado vai ocorrer novamente. Por exemplo: identificar a repetição de determinados crimes para verificar a possibilidade do recidivismo no âmbito criminal. No exterior já foi feita uma experiência para gerar estatística.
Precisa saber se a pessoa é reincidente ou não para calibrar a pena.
Para calibrar a pena e até para uma eventual soltura enquanto se aguarda o julgamento do processo principal.
Mas como que faz isso quando os processos ainda são físicos?
Por isso uma das prioridades tem que ser a utilização do processo eletrônico, que vai agilizar a prestação jurisdicional, facilitar o acesso das partes e dos advogados. O processo eletrônico não tem volta. Você tem que estimular e aprimorar o mais rápido possível (o Processo Judicial eletrônico está implantado em 99 unidades da Justiça Estadual).
Mas mesmo com o processo físico existe um sistema que utiliza os dados alimentados pelos servidores. Esses dados alimentados podem ser usados para uma base para uma construção de algumas ferramentas de inteligência artificial.
Quando deve haver a implementação de alguma ferramenta de inteligência artificial no TJES?
Até o final do ano já vamos lançar nossa primeira experiência pela corregedoria.
Qual é o projeto?
Prefiro esperar mais um pouco.
Como a tecnologia pode afetar os juízes?
O trabalho do juiz é julgar. Ele também tem entre as suas atribuições ser gestor da sua unidade judicial. Mas não podemos transformar um juiz, que é um profissional capacitado para julgar e que já tem um custo elevado para o Estado, num servidor que vai simplesmente gerir processos. Isso tem que ser uma atribuição da corregedoria que eu pretendo fazer, estou desenvolvendo uma iniciativa nessa linha, para deixar que o juiz cumpra a sua função principal, que é julgar.
Uma inteligência pode gerar estatística e sugestões sobre como o juiz tem que manejar o trabalho.
Isso. Por exemplo, podemos ver que há um crescimento de processos conclusos para decisão ou um crescimento do prazo de audiência. Esse manejamento inteligente do tempo pode auxiliar o juiz para decidir qual é a prioridade que ele vai dar.
Hoje está muito na moda as ferramentas que fazem análises preditivas utilizando redes neurais e machine learning, que é o aprendizado de máquina.
Falando assim parece coisa de ficção científica, mas não é. Ou é? Pode parecer que vai custar muito caro ou que precisa ter um supercomputador
Esse computador na sua mão (o smartphone) tem capacidade muito superior aos de dez anos atrás. Isso já é suficiente para rodar um programa muito poderoso.
Hoje no WhatsApp você dita e ele transforma em texto escrito. Hoje tem uma margem de erro muito pequena e à medida que você utiliza ele vai corrigindo e aprendendo.
Você pode utilizar e isso vamos usar na corregedoria, algumas APIs que transformam a linguagem natural para texto e que você depois analisa o texto com um programa inteligente para apresentar resultados e o resultado em texto é convertido novamente em linguagem natural. E isso já existem diversos produtos no mercado, não preciso desenvolver.
Não há necessidade de desenvolver uma tecnologia a que você já tem acesso. O escopo do nosso centro de inteligência artificial é desenvolver o que não temos acesso.
Pode pegar emprestado de outro tribunal?
Pode. Por exemplo, Rondônia desenvolveu o Sinapses. Eu conheci o Sinapses, que utiliza técnicas de redes neurais muito interessantes. Já conversei com o coordenador do CNJ e eles vão incorporar. Conheci o Radar, de Minas Gerais. Fui ao laboratório da IBM e conheci o Watson.
Uma ferramenta que está sendo proposta e algumas estão em fase de teste: muitas audiências hoje estão sendo gravadas. No passado, a testemunhava ditava para o juiz, que ditava para o escrevente. Com todo respeito, isso já está ultrapassado. Há muito tempo os juízes já pedem para a testemunha ditar direto para o escrevente e hoje se grava. O que está em teste são programas que transformam o texto gravado em texto escrito.
ALGUMAS INICIATIVAS
TJRN
O robô Poti é utilizado para execução fiscal e penhora de bens. Enquanto um servidor consegue executar no máximo 300 ordens de bloqueio ao mês, Poti leva 35 segundos para fazer o mesmo.
TJPE
A robô Elis faz a triagem de processos de execução fiscal, que são 53% de todas as ações em trâmite em Pernambuco. Ela confere dados da Certidão de Dívida Ativa (CDA) e se o processo prescreveu. Enquanto a triagem manual de 70 mil processos leva em média um ano e meio, Elis analisa pouco mais de 80 mil em 15 dias.
TJMG
O robô Radar ajuda magistrados a localizarem casos repetitivos e agrupá-los, procurando por palavras-chave. A ideia é que, quando alguém recorrer da decisão em primeira instância, modelos de recursos de casos similares já estejam pré-definidos.
TJRO
O robô Sinapses, no ar desde fevereiro de 2018, e faz uso de redes neurais. Ele possui um banco de dados de 44 mil despachos, sentenças e julgamentos, e seleciona decisões anteriores sobre o mesmo tema. Uma ferramenta chamada "gerador de texto" ajuda na elaboração de textos sugerindo palavras.
(Com informações do jornal "O Estado de S. Paulo")
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