Uma atividade escolar com a temática LGBTQIA+ para adolescentes de uma escola estadual de Vitória ganhou contornos políticos. O vereador da Capital Gilvan da Federal (Patriota) encaminhou à mãe de uma estudante da Escola Estadual Renato Pacheco um áudio em que afirmou que ia "aguardar na saída", nesta segunda-feira (21), a professora que ministrou a tarefa aos alunos para deixá-la "acuada".
O caso ocorreu após a mãe reclamar com o parlamentar sobre a atitude da docente na aula on-line, alegando que o tema não deveria ser abordado na escola, de acordo com o vereador. A mensagem, enviada por Gilvan, foi compartilhada pela mulher em um grupo de responsáveis pelos estudantes no WhatsApp.
A atividade da disciplina de Inglês, para alunos do 1º ano do ensino médio, fornecia um texto, retirado da Livraria do Congresso Americano (Library of Congress – LOC, na sigla em inglês), sobre os significados do termo LGBTQIA+ e o Mês do Orgulho LGBT, celebrado em junho.
Após ser acionado pela mãe da aluna, Gilvan enviou um áudio, em que informou quais atitudes tomaria sobre o caso, inclusive externou que pretendia "deixar a professora acuada". "Amanhã eu vou conversar com a diretora e dizer que, se isso não resolver, eu vou representar a professora no Ministério Público e, na segunda-feira, vou olhar olho no olho com essa professora, vou aguardar ela na saída e nós vamos bater boca, vamos discutir, mas eu vou filmar tudo. Eu quero deixar ela acuada".
Na sexta-feira (18), Gilvan esteve na escola para conversar com a professora Rafaella Machado, 35 anos, responsável pela disciplina. Funcionários da unidade disseram que ele entrou em uma área restrita e disse à docente que a atividade era um "absurdo" e que "tomaria as medidas cabíveis". Ele confirma o encontro, mas nega ter invadido uma área restrita.
Rafaella informou que não poderia conversar com o vereador, porque ministraria uma aula naquele horário. O parlamentar, então, foi recebido pela coordenadora da escola.
O caso foi levado à Polícia Civil. A professora registrou um boletim de ocorrência contra Gilvan por ameaça e intimidação. Ela cita a tentativa de acuá-la e intimidá-la durante o trabalho.
O secretário estadual de Educação, Vitor de Angelo Amorim, escreveu uma mensagem nesta segunda-feira no Twitter em apoio à professora. "Manifestamos nossa solidariedade à professora da rede estadual intimidada no exercício do seu trabalho e repudiamos qualquer atitude dessa natureza. Acionamos o Ministério Público para apurar as ameaças atribuídas ao vereador Gilvan da Federal contra a nossa servidora", publicou.
A Secretaria Estadual de Educação (Sedu), responsável pela escola, disse que está acompanhando o caso e que vai representar contra Gilvan no Ministério Público do Espírito Santo (MPES) por "possível ameaça" contra a professora. "A Sedu informa que acompanha o caso e que tomará as medidas cabíveis junto ao Ministério Público diante da possível configuração de ameaça contra a professora", diz a nota.
O texto fornecido aos alunos para a atividade aborda o significado de cada letra da sigla LGBTQIA+ e conta a história da origem do movimento nos Estados Unidos. O objetivo da tarefa era interpretar o conteúdo em inglês e responder a perguntas objetivas em português. De acordo com a professora, Rafaella Machado, a atividade foi elaborada seguindo as diretrizes curriculares e acompanhada pela equipe pedagógica da escola.
As questões que os alunos deveriam responder referem-se a informações tratadas ao longo do texto, como qual é o mês do orgulho LGBTQIA+, onde surgiu a primeira passeata do movimento e qual o objetivo de celebrar a data. Em um outro trecho, o conteúdo também narra dificuldades de um professor para lidar com a homofobia em sala de aula.
A docente explica que todos os anos, no mês de junho, que marca a data de combate à homofobia, leva para a sala de aula textos sobre o cotidiano, que, de alguma forma, inserem o tema em sala de aula. Segundo ela, essa metodologia, que é prevista na base curricular nacional, também é utilizada no mês de março, em que se debate o empoderamento feminino, e no mês de novembro, em que se aborda o combate ao preconceito racial.
A professora relata que a forma como o vereador tentou abordá-la, dentro das dependências da escola, foi agressiva. Como teria que ministrar uma aula, ela pediu para que ele procurasse a pedagoga e a coordenadora da unidade. "O vereador ultrapassou o portão da escola e veio atrás de mim, disse que queria falar sobre a atividade que dei e que iria tomar providências contra mim. Fez isso de uma forma agressiva, tanto em relação a mim como a outras mulheres que estavam lá na hora", afirma.
O vereador Gilvan da Federal disse que vai representar contra a escola no Ministério Público por conta da atividade escolar sobre o tema LGBT. Negou, porém, ter ameaçado a professora. Ele alega que sua ação foi motivada por um pedido da mãe da aluna.
A mãe da aluna que se queixou da atividade foi procurada pela reportagem de A Gazeta, mas não foi localizada.
Quanto ao áudio em que aparece dizendo que iria à escola "bater boca" e "acuar" a professora, o parlamentar disse à reportagem, na manhã desta segunda, que também não considera que essas palavras possam configurar ameaça.
"Bater boca agora é agressão física?", questionou. Lembrado que, no áudio, também disse que "queria deixar ela acuada", o vereador também deu outro sentido à frase. "Ela (a professora) representa na Polícia Civil, não tem problema nenhum. A gente responde isso também. Acuar tem vários sentidos, acuar no sentido de estamos de olho", respondeu.
Mais tarde, em entrevista à TV Gazeta, Gilvan não comentou o conteúdo dos áudios, não confirmou nem negou que sejam de autoria dele e disse que somente falaria sobre isso "em juízo".
A partir da ação do vereador, o caso ultrapassou os limites da escola e tomou as redes sociais. Estudantes lançaram a hashtag #EstamosComVocêRafa em apoio à professora. Uma nota repudiando o ato do vereador, assinada por 81 entidades, também saiu em defesa de Rafaella.
Para A Gazeta, a doutora em Educação e professora da Ufes Cleonara Maria Schwartz lamentou o episódio e afirmou que a temática abordada pela professora obedece a Base Curricular Nacional, que segue a orientação do Ministério da Educação.
Construída por pesquisadores e profissionais da Educação, a Base Curricular é definida por uma lei nacional e compete a todo território brasileiro. Nela, há uma das diretrizes que determina que um dos objetivos da aprendizagem contempla o desenvolvimento acerca da diversidade sexual. Para Schwartz, o ato do vereador cria um ambiente de terror e medo não só para os professores, como para os alunos da escola.
"O que esse vereador fez causa um problema imenso para a aprendizagem. A escola não pode ser invadida por orientações de pessoas que não estão preparadas para lidar com o tema. Não compete a um vereador definir o que deve e o que não deve ser ensinado. Isso cria uma situação de medo e terror para os alunos, que vão ter medo de falar, e para os professores também. A escola deve ser um espaço de paz e não de ódio", disse.
Para o advogado criminalista Jovacy Peter Filho, a situação preenche os requisitos para configurar um caso de ameaça, previsto no Código Penal, que pode levar à prisão, com pena de três meses a um ano. Ele explica que o fato de uma pessoa se sentir coagida a não exercer sua atividade já pode ser entendido como um suposto caso de ameaça.
O advogado argumenta que cabe ao vereador alegar que a mensagem tinha cunho privado, já que o áudio foi direcionado a uma outra pessoa. Peter Filho também destaca que, além do aspecto criminal, o caso também pode ser analisado pela Corregedoria da Câmara, para analisar se houve quebra de decoro da ética parlamentar.
A Polícia Civil informou, por meio de nota, que o caso foi registrado de forma on-line "como crimes diversos e validado no 5º Distrito de Polícia de Vitória".
"Como o crime de ameaça depende de representação por parte da vítima para que haja investigação, e feito exclusivamente pelo ofendido (pessoa física), a polícia orienta que a vítima compareça na sede do 5º Distrito de Polícia de Vitória, em Jardim Camburi, e manifeste o desejo de representar criminalmente contra o vereador", diz ainda o texto.
Movimentos sociais capixabas de combate à homofobia e entidades de classe de professores da rede pública emitiram uma nota em conjunto, no último domingo (20), em defesa da professora Rafaella Machado. Eles repudiaram a forma como o vereador Gilvan da Federal tentou, segundo eles, intimidar a profissional da Educação.
"A conduta do vereador mostra-se frequentemente em desacordo com o cargo que ocupa. Mas a possibilidade de punição parece não incomodá-lo e assim ele mantém sua postura truculenta e odiosa perante temas sensíveis que tocam a muitos moradores e eleitores da capital", diz um trecho da nota, assinada por 81 entidades.
Nela, são lembrados outros episódios envolvendo o vereador, como um discurso feito por ele na Câmara de Vitória em que criticava a roupa da vereadora Camila Valadão. O ato foi analisado pela Corregedoria da Câmara que decidiu, na quarta-feira (16), pelo arquivamento do caso.
Os movimentos articulam uma manifestação na frente da escola em defesa da professora e repudiando as mensagens do vereador. O ato foi convocado com concentração às 17h desta segunda-feira (21).
O vereador voltou a comentar sobre o caso na Câmara de Vitória nesta segunda. Em discurso no plenário durante a sessão, criticou a atividade, que ele classificou como "militância política". Para Gilvan, a educação sexual deve ser um assunto abordado pelos pais e não pela escola.
“Quer fazer sua militância? Faça lá na Ufes, faça lá na CUT, faça lá no MST. Na escola, não. Na escola é português, matemática ou inglês. Na atividade, ela pergunta qual é o ‘dia de sair do armário’. É por isso que o pessoal não sabe fazer uma regra de três quando termina o segundo grau. Isso não é professor, é militante”, disse, na Câmara Municipal.
As vereadoras Camila Valadão (PSOL) e Karla Coser (PT) repudiaram o ato de Gilvan. Para elas, o vereador foi homofóbico e sua atitude atrapalha o andamento da atividade escolar. "Não há nada de errado na atividade da professora, ela não pode ser perseguida porque o senhor pensa diferente. Não vamos aceitar caladas essa escalada de perseguição baseada em preconceito e homofobia", discursou Karla Coser.
Para Valadão, o direito da família de educar seus filhos deve conviver de maneira harmoniosa com a liberdade de ensino e o direito à educação nas sociedades democráticas. "Sabe o que não deve conviver dentro de uma sociedade democrática? A prática da coação e da coerção por parte de agentes públicos", observou.
Pelo Twitter, o senador Fabiano Contarato (Rede), manifestou apoio à professora: "Toda a nossa solidariedade à professora Rafaella Machado dos Santos, ameaçada por exercer seu ofício ao trabalhar em sala de aula o Orgulho LGBTQIA+, celebrado este mês. Educação não aceita mordaça e homofobia é crime!".
O texto foi atualizado para incluir o que o vereador falou à reportagem, ainda pela manhã, sobre o conteúdo dos áudios compartilhados em grupos de WhatsApp com críticas e/ou ameaças à professora. E também o que ele disse, em entrevista à TV Gazeta, mais tarde, sobre os mesmos áudios.
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