Dividir o apartamento, o palco, a vida. Escolher com quem compartilhar espaços e momentos envolve diversos critérios, sempre foi assim. Mas, de uns tempos para cá, o posicionamento político tem sido levado em conta de forma mais usual, pelo menos para alguns eleitores.
Ao anunciar a vaga em uma república, em Vitória, o estudante Robson Silva, de 21 anos, avisou, no Facebook: "não aceitamos bolsominions". A referência é a eleitores de Jair Bolsonaro (PSL).
"Algumas pessoas ficaram questionando: 'qual o problema da pessoa ter votado no presidente Bolsonaro?' e tudo mais. Sendo que a gente só não queria uma pessoa preconceituosa dentro de casa porque, estatisticamente, eleitores do Bolsonaro são mais preconceituosos, LGBTfóbicos, machistas, racistas", afirma o estudante.
"E a gente é uma casa de muita diversidade. Eu sou gay. A Maria Clara (que também mora no apartamento) é mulher. A gente não queria ficar numa situação desconfortável, que já passamos antes. Os antigos moradores eram extremamente machistas. E, assim, a gente encontrou uma pessoa muito legal", conta.
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No "outro lado", há a professora de História Crisley Valle, de 45 anos. Ela mora em Cariacica, é militante pró-Bolsonaro e até filiou-se ao PSL.
Crisley também não se vê, hipoteticamente, dividindo o lar com "o pessoal da esquerda". E muito menos em um relacionamento com alguém de posicionamento político tão diferente. "Conviver com o antagonismo é complicado. Sabendo que foi o maior genocídio da História, o de Stalin (Josef Stalin, que governou a União Soviética), você ainda vestir camisa do partido comunista? Como vou conviver com uma pessoa dessa?", questiona.
"Eles acham normal liberar as drogas, o aborto. E eu sou conservadora. Seria uma guerra fria ideológica", resume.
"MIMIMI"
O médico Carlos Barreto, de 58 anos, morador de Vitória, acha que é melhor a divisão de matizes, de cores. "É o perfil de direita. O cara não quer mais saber desse mimimi, desse chororô. Azul é azul e rosa é rosa", define.
"A política hoje passou a ser parte da vida das pessoas. O cara que vai ver um filme, até no cinema ele vê se está politizado aquele tema. Se você vai numa loja..."
Aí entra o tema das relações de consumo. O médico diz que considera isso na hora de decidir onde comprar algum produto. Dá preferência, por exemplo, a empresas cujos donos apoiaram Bolsonaro na eleição. E está ansioso pela possível abertura de uma Havan do empresário Luciano Hang, aliado de primeira hora do presidente da República na Grande Vitória. "Se chegar a Havan, nós vamos ajudar o Luciano Hang", adianta.
"Quem quiser ser esquerda, vai ser uma minoria, mas vai continuar vivendo. Mas do ponto de vista de consumo, é isso que está acontecendo. Nós estamos selecionando, sim", afirma Barreto.
Já o estudante Robson não compra na Centauro, loja de materiais esportivos, porque o dono da rede, Sebastião Bomfim Filho, declarou voto no então candidato do PSL em 2018.
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"Sou atleta, mas soube que ele apoiava o Bolsonaro e não compro mais lá. Não é questão de posicionamento político. Uma coisa é se a gente estivesse discutindo políticas econômicas. Agora, dar suporte a alguém que tem discurso machista, homofóbico, racista, não dá. Não é questão de posicionamento político, é de preconceito mesmo", avalia Robson.
SHOW
O músico Marcelo Buteri, 40 anos, por sua vez, teve que fazer uma escolha. Convidado a tocar bateria numa banda, numa apresentação especial, não remunerada, teria que dividir o palco com outro músico que tem posicionamento político divergente.
Marcelo é de esquerda. A apresentação será no próximo final de semana, no Viradão Vitória. A participação dele seria no Dia V, com músicas da banda Dead Fish. "Um dos caras que ia tocar é o contrário do que a música representa, do que a banda representa, e eu meio que recusei, não rolou. Tenho outros compromissos também, mas isso pesou muito na hora", revela. Marcelo já integrou o Dead Fish. "É uma banda de esquerda, todo mundo sabe disso."
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Ele diz que não chega a escolher lojas para comprar coisas no dia a dia com base em critérios políticos e não adota radicalismos, mantém amigos de outros polos ideológicos. Mas compraria até na Havan? "Lá, não, nem a pau."
É NATURAL BUSCAR POR SEMELHANTES
A doutora em Psicologia Social pela USP Angelita Scárdua diz que a busca por pessoas que compartilham dos mesmos valores que os nossos "faz parte". "No fim das contas, nossa escolha política tem relação com nossos valores, com o que a gente acha que é certo, errado, bom, ruim", destaca.
"Quando a gente escolhe alguém para morar na nossa casa ou estabelecer um vínculo afetivo, é natural querer alguém com os mesmos valores que os nossos, isso é normal", complementa.
"Tenho a sensação que o brasileiro está vivendo um despertar político, sempre viveu muito adormecido para questões políticas e passou a entender que a política faz parte da vida. As nossas escolhas políticas dizem muito sobre a maneira de ver o mundo. Mas o brasileiro ainda é muito imaturo quando o assunto é política, é conduzido pelas emoções, levado pelas paixões", avalia a psicóloga.
Se está tudo bem levar em conta esses valores nas relações pessoais, existe um porém: evitar pré-julgamentos. "Partimos do princípio que o eleitor de um determinado político representa uma forma de pensar, sem nuances. Achar, por exemplo, que todo eleitor do Bolsonaro é homofóbico ou que todo eleitor do Haddad (do (PT) usa drogas é ser preconceituoso. A gente não dá ao outro a chance de se mostrar, de conhecer a outra pessoa", diz Angelita.
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"Uma coisa é: eu conheci a pessoa, vi que não tem nada a ver comigo e não quero conviver com ela. Ok. Outra é: não a conheço, mas por causa de uma característica dela não quero conhecê-la".
DEBATE
O médico Humberto Pinto, que organiza manifestações de direita à frente do Vitória da Ética, avalia que é importante debater ideias com quem pensa diferente, sem pré-julgamentos. "Você pode ser uma pessoa de esquerda extremamente honesta, com qualidades, e ser preterida por alguém com posicionamento de direita que não tem essas características", exemplifica.
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"Sempre tem aquele que diz ah, não converso com ele, não perco nem meu tempo. Acho que a gente tem que debater, sim. Já comprei camisa do Che Guevara na universidade por ignorância, depois fui ver os posicionamentos dele e não concordei", conta.
"Esse clima de ódio e perseguição surgiu com o atual presidente, até de metralhar a petezada ele falou. Foi o sinal mais perigoso e contundente de um candidato que enalteceu um torturador, o único aliás reconhecido pela Justiça como tal (o coronel Brilhante Ustra)", afirma o ex-preso político e militante de esquerda Francisco Celso Calmon.
"Estamos numa democracia, mas a democracia está sendo atrofiada", afirma. "Mas quero que se desarme esse estado de belicosidade. A democracia é fundamentalmente o diálogo."
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