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Portas fechadas: técnicos de futebol negros sofrem com o racismo velado

Portas fechadas: técnicos de futebol negros sofrem com o racismo velado

Para jogar, "produzir" há oferta abundante para negros, mas para cargos de gestão e chefia, a realidade é outra. Dos 20 clubes que disputam o Brasileirão, por exemplo, apenas um tem técnico negro

Publicado em 20 de novembro de 2020 às 06:05

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Técnicos negros sofrem com a falta de oportunidade e relatam que racismo é velado
Técnicos negros sofrem com a falta de oportunidade e relatam que racismo é velado. (Fabio Diena / Shutterstock / Divulgação)

O racismo no futebol está presente em muitas partes do mundo e infelizmente, o último caso de grande repercussão aconteceu recentemente, em setembro, envolvendo Neymar,  jogador do Paris Saint-Germain e da Seleção Brasileira. Em campo, a visibilidade desses casos é grande, longe dos holofotes o preconceito contra técnicos ou dirigentes negros, ocorre, quase sempre, de forma velada.

Esta sexta-feira (20), traz com ele a data que celebra a Consciência Negra, dia de valorizar a cultura negra e também de fortalecer da luta contra o preconceito racial no Brasil. No futebol, assim como em outros meios, a luta é diária. O 6ª Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, baseado nos casos de preconceito ocorridos durante todo o ano de 2019 e, produzido pelo Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/PROREXT, aponta que houve aumento no número de ocorrências discriminatórias de todos os tipos no Brasil e no exterior. Somente por questões raciais, foram 52,27% a mais, em comparação ao ano anterior.

No grupo dos grandes nomes da bola, brasileiros como Pelé, Garrincha, Jaizrinho, Romário, dentre outros, figuram absolutos, todos negros. Já nos bastidores, cargos como os de técnico de futebol, em sua maioria são ocupados por profissionais não negros. Na Série A do Campeonato Brasileiro, por exemplo, dos 20 times, apenas um tem um técnico negro: o Sport, comandado por Jair Ventura.

Lembrando que, de acordo com o professor doutor em educação e pró-feitor de Assuntos Estudantis e Cidadania da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Gustavo Forde, negro no Brasil, refere-se a cidadãos que se declaram pretos ou pardos à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados de 2019 da PNAD, apontam que 42,7% dos brasileiros se declararam brancos, 46,8% pardos, 9,4% pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. Ou seja, 56,19% da população brasileira é negra.

De acordo com Marcelo Carvalho, diretor do Observatório do Racismo no Futebol, que produziu o 6ª Relatório Anual, a não presença de técnicos negros no Brasil é o retrato de uma sociedade que nasceu e cresceu acreditando que homens e mulheres negras não são capazes intelectualmente. “A não presença de técnicos negros é um dos maiores símbolos do racismo no futebol brasileiro porque não é apenas a não presença de técnicos negros, que também é a não presença de negros nos cargos de comando dos grandes clubes do futebol brasileiro”, protesta o diretor.

racismo velado é confirmado por Hemerson Maria, ex-jogador profissional e treinador de clubes como Avaí, onde foi campeão catarinense, Red Bull Brasil, Vila Nova, Fortaleza, Joinvile, onde foi campeão brasileiro da série B, Chapecoense e Brasil de Pelotas, seu último clube.

Hemerson Maria, ex-jogador e ex-técnico do Figueirense.
Hemerson Maria, ex-jogador e  hoje técnico no futebol. (AV Assessoria de Imprensa)

“Existe sim um racismo velado e num esporte onde historicamente nós temos o maior atleta, o atleta do século que é o Pelé, sendo um negro. Geralmente os jogadores de destaque, que fazem sucesso até em nível internacional, eles são negros. Quando se fala de um negro estar ocupando um cargo de chefia entra a questão do racismo estrutural, onde foi criado um padrão, que o branco, ele tem que ser o chefe, ele tem que mandar e o negro tem que ser o serviçal”, declara Maria.

Durante a sua carreira no futebol, Hemerson revela que nunca sofreu diretamente preconceito racial. Mas indiretamente, já percebeu e vê muitos profissionais capacitados sendo excluídos simplesmente pela cor da pele. “Eu vejo muitas pessoas capacitadas, que estão preparadas para assumir um cargo de executivo de futebol, num clube, de presidente, cargos importantes e eles não conseguem simplesmente porque há o preconceito, há a preferência por pessoas da cor da pele branca e acabam excluindo o negro”, afirma.

No Espírito Santo, à frente do Real Noroeste, time do município de Águia Branca, na Região Noroeste do Estado, Duzinho dos Reis, afirma não ter sofrido racismo diretamente, mas observa a discriminação por motivo de classe social com colegas e jogadores. O técnico aponta inclusive, que profissionais de times ditos de “classe alta”, utilizam a intimidação como estratégia para desestabilizar o jogador adversário. 

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Graças a Deus eu não presenciei nada sobre o racismo, mas a gente sabe que acontece. O que eu vejo e muito é o preconceito com relação à classe alta de alguns times, desmerecendo os jogadores de times de classe mais baixa e usando isso até como estratégia de jogo

Duzinho dos Reis
Técnico do Real Noroeste
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Duzinho dos Reis conhece o elenco do Real Noroeste com a palma da mão e quer extrair o melhor de seus jogadores para conquistar a taça
Duzinho dos Reis afirmou que não sofreu com o racismo, mas sabe que acontece no mundo da bola. (Jose Renato Campos)

LUTA DIÁRIA

O contexto histórico que envolve o racismo no Brasil é apontado pelos profissionais como mote para as lutas pessoais que eles travam no dia a dia contra o preconceito racial. Hemerson Maria relata perceber olhares de incômodo, quando se está em um cargo de gestão e que sempre aconselha amigos e familiares negros sobre o comprometimento que se tem que ter diante de oportunidades que lhes são dadas. 

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Eu costumo sempre dizer que nós, os negros que tentam ter alguma posição de liderança, de chefia, temos que não matar só um leão. Tem que se matar um leão e um urso polar por dia

Hemerson Maria
Ex-jogador e ex-técnico do Figueirense
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Sobre o futuro, Duzinho tem um olhar otimista e acredita que a reparação com a história do povo negro no Brasil é uma luta que não pode parar. “Acredito que tem que existir a reparação com o negro, pela história. Eu tenho mãe negra, esposa e gostaria que a gente não precisasse passar pelo que os negros passam todos os dias. Mas era pior em tempos atrás, hoje a gente já vê médicos e advogados negros. E o esporte, ele é o que mais consegue quebrar e democratizar isso”, afirma Duzinho.

A luta antirracista é uma bandeira que Hemerson faz questão de levantar e vê na sua posição como profissional do futebol uma grande oportunidade de divulgação sobre o contexto histórico vivido no país. Ele analisa que grande parte dos negros são também os que estão em classes mais pobres, enquanto que, nas classes mais ricas, a grande maioria da população é branca. E essa diferença social é reforçada ainda, no acesso à educação, que segundo ele, deve ser facilitada aos negros, para que ele tem acesso a boas escolas e melhores capacitações para o mercado de trabalho e cargos de gestão.

“Nós temos a capacidade, mas ao mesmo tempo, a sociedade, especialmente os mais jovens tem que saber que o que aconteceu no passado foi uma tremenda covardia, foi uma vergonha. Hoje nós temos 132 anos desde que o Brasil ficou livre desse regime de escravidão, contra 388 de um regime de escravatura. E isso fez com que os negros tivessem um tremendo prejuízo cultural, social, que não se recupera em pouco mais de um século”, finalizou Maria.

FUTEBOL É UM MEIO PRECONCEITUOSO

Além do preconceito racial, dados do 6ª Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol apresentam ainda, a discriminação em outras esferas sociais. Dos 133 casos no futebol, durante o ano passado, 82 envolveram discriminação racial, enquanto os demais foram relacionados a LGBTfobia e xenofobia. 

*Mônica Moreira é aluna do23º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta e foi supervisionada pelo editor Filipe Souza.

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