O futebol feminino passou por anos de defasagem quando comparado com o masculino. Por anos, foi proibido, e a primeira participação das mulheres em um campeonato mundial foi em 1991. Se para a Seleção Brasileira Feminna há uma grande distância do equivalente masculino, no Espírito Santo, a distância é ainda maior. A primeira edição ocorreu em 2010, e somam 13 disputas. Porém, ainda assim, precisa conviver com a persistência para subsistir. Inclusive, os pais das atletas vendem chup-chup e salgadinho para ajudar os clubes a entrarem em campo. Há relatos de que até torcedores já pagaram para atletas viajarem para jogos pelo Estado.
Segundo Thiago Torrezani, presidente do Estadual FC, a luta das meninas começa já com os treinamentos. Muitas delas não dispõem do dia inteiro, pois se ocupam com outros ofícios. "Os treinamentos costumam ser feitos à noite. O Estadual conta com um patrocínio, apenas, que assegurou a confecção das camisas. Temos pais de atletas que ajudam com alguns valores, inclusive vendendo chup-chup e salgadinhos. As atletas chegaram a fazer vaquinha para ajudar a custear a ambulância que precisa acompanhar as partidas".
Ele prossegue dizendo que, para os times entrarem em campo, é preciso um laudo que ateste o registro dos atletas. O recomendável é que as jogadoras estejam registradas tanto na Federação de Futebol do Estado do Espírito Santo (FES) quanto na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mas isso se reflete em grandes custos. Há quem opte por afiliar-se apenas à FES para baratear o gasto. "Pagamos 150 reais por atleta inscrita".
A conta poderia parecer fácil se pensarmos em um time completo, com 23 jogadoras. O clube, porém, só registrou 17 jogadoras e, com isso, chegou ao valor de R$ 2.550, que esgotou as finanças da equipe, que acaba ainda mais fragilizada em seus cofres a cada viagem. A próxima será para São Mateus, no Norte do Estado. "No último domingo mesmo foram R$ 1.000,00 embora, em um jogo que era para ser em casa. Temos que arcar com muitos custos do nosso bolso, como o próprio aluguel do campo, transporte, ambulância e alimentação", ressalta o dirigente.
Realidade diferente é a vivida pelo Rio Branco - VN, que conta pela primeira vez com uma equipe feminina e é o único clube a estar presente tanto no masculino quanto no feminino. Conta-nos Breno Caliman, presidente do clube de Venda Nova do Imigrante, que, desde que assumiu a gestão pensava em estabelecer um elenco feminino. "Montamos o projeto inicialmente sem caixa, no zero, através de uma peneira, e agora estamos indo ao mercado, trazendo algumas meninas e reformulando o time. Ainda que a gente vá oportunizar as atletas regionais, vamos trazer atletas profissionais".
Na última rodada, do fim de semana, o Rio Branco-VN trouxe uma atleta profissional, apenas, e objetiva trazer outras até o fim do campeonato. Sendo assim, o tricolor atualmente é um clube misto, composto tanto por atletas profissionais quanto por aquelas que estão buscando a profissionalização. A ideia do dirigente é permitir a elas as mesmas condições concedidas ao time masculino. Tanto que o treinador é Leomir Constâncio, o mesmo da equipe masculina, que cedeu toda a sua comissão técnica, incluindo preparadores de goleiros, por exemplo. O clube é um dos poucos a contar com patrocinador exclusivo e de grande porte junto a si. Ainda de acordo com Caliman, a expectativa é que o futebol capixaba se engrandeça após a Copa do Mundo de futebol que ocorrerá no Brasil em 2027.
Segundo a jogadora do Estadual FC, Nikhole Ferrari, o nível do futebol no Estado é muito bom e há times que poderiam, facilmente, competir com outros de maior visibilidade. Porém, ainda há uma névoa de invisibilidade sobre o esporte. "Falta apoio e visibilidade. Com relação ao futebol, talvez estejamos em um nível mais profissional quando comparados com outros estados. Naturalmente, temos que evoluir como atletas e como time, mas não creio que vá ser um caminho longo até chegarmos à profissionalização, atraindo patrocinadores e apoiadores".
Ferrari precisa conciliar os seus jogos com seu outro ofício. Ela é auxiliar administrativa. "Quase todas nós temos que conciliar os jogos com outras atividades. As mais novas com os estudos e as mais velhas com os empregos, e às vezes com estudo e o emprego".
A jogadora conta que começou no esporte quando tinha cerca de seis anos de idade e jogava na rua com seu irmão e os amigos dele por não ter nenhuma menina jogando bola. Anos depois, entrou em um projeto social que contemplava meninas, mas saiu por falta de apoio da família. Depois, persistiu e entrou para o elenco do Estadual - que inclusive recebe esse nome por ter em sua base apenas meninas de um Colégio Estadual.
Desde 2015, o Vila Nova costuma sair campeão do Campeonato Capixaba feminino. Sua atleta de destaque, Kamilla, salienta que a luta é para manter a hegemonia do clube, mas sabe que a luta é grande. "Aqui no Espírito Santo as coisas são subdesenvolvidas e o futebol é uma delas. Cresce, de alguma forma, mas estamos longe de voos mais altos. São poucos os que acreditam no futebol feminino. O preconceito sempre vai existir para a mulher, independente se for no futebol ou em outro esporte. Por vezes, até mesmo dentro de casa, pois há quem tenha o futebol como um esporte masculino", diz a atleta, que trabalha como auxiliar de cozinha paralelamente ao futebol.
Nikhole finaliza dizendo esperar um dia ver o campeonato feminino sendo visto de uma forma diferente. "Tendo público nos estádios. A grande maioria das pessoas dentro do nosso próprio Estado não sabe sequer que existe um Capixabão Feminino, nem que ele está acontecendo. Ver um estádio com pessoas prestigiando o futebol feminino seria um sonho realizado".
Em 14/04/1941, um decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas proibiu as mulheres de praticarem a modalidade. Foi considerado inaceitável que mulheres contrariassem a “natureza de ser mãe” em um esporte masculino e violento, segundo o decreto 3.199, “que estabelece as bases de organização dos desportos em todo o país”. Ao jornal O Dia Esportivo, um médico chamado Leite de Castro escreveu, por exemplo, no jornal curitibano, em junho de 1940: "O futebol é um esporte violento capaz de alterar o equilíbrio endócrino da mulher".
Em 1965, durante a ditadura militar, são detalhados quais os esportes que não podem ser praticados por mulheres: "não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e beisebol". A proibição ao futebol só foi revogada em 1979. Em 1983, o CND considerou o futebol feminino aceitável e o regulamentou. No mesmo ano, foi realizada a Taça do Brasil, torneio nacional. E, em 1991, as jogadoras da seleção brasileira iam, pela primeira vez, para a Copa do Mundo. O primeiro Campeonato Capixaba, conforme ressaltado, só ocorreu em 2010.
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