A torcida explodindo num gol. O som da bateria. Os fogos de artifício que antecedem os jogos. Tudo isso compõe fortemente a memória de quem é um torcedor apaixonado e, mais que isso, consolida as relações de afeto com o clube do coração. Entretanto, para as pessoas que convivem com o autismo, toda essa oferta de barulhos pode servir de gatilho para um episódio de crise.
Neste dia 2 de abril (terça-feira) é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, e constatamos que atualmente, no Espírito Santo, não há nenhum estádio preparado para atender torcedores com espectro autista. Como forma de sensibilizar à causa das pessoas que convivem com TEA, a Associação dos Amigos dos Autistas do Estado do Espírito Santo (Amaes) marcou para o dia 14/04 uma caminhada pela orla de Camburi.
No que tange aos estádios, a Secretaria de Esportes e Lazer do Espírito Santo (Sesport) informou que "atualmente há um projeto em fase de elaboração para a construção de uma sala sensorial no Estádio Estadual Kleber Andrade, voltada para a pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA)". A Federação de Futebol do Espírito Santo (FES), por sua vez, confirmou que nos 15 estádios aptos a receber jogos, nenhum possui sala sensorial. Ainda conforme o órgão, "não houve demanda" para a construção das salas sensoriais.
Na Câmara Federal tramita um Projeto de Lei, o 14.597/23, do deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF) que preconiza a inclusão de salas sensoriais em estádios de futebol para atendimento a pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Aqui no Estado há outro Projeto de Lei, o 153/2023 da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), elaborado pela deputada Iriny Lopes (PT), que dispõe de formas a garantir a criação de salas sensoriais, chamadas "Salas do Bem", para atender pessoas que convivem com o TEA não só nos estádios de futebol como nos grandes eventos. Em paralelo a isso, no âmbito privado, há movimentos internos nas torcidas dos clubes em promover maior inclusão dessas pessoas nos estádios, através da fundação de torcidas especiais.
As salas sensoriais são espaços mais controlados e com condições acústicas, iluminação suave, áreas de descanso e de iluminação favoráveis para que a pessoa autista se confortável. O ideal é que para a edificação de espaços assim haja o acompanhamento de entidades especializadas.
Clubes como Corinthians, Coritiba, Goiás e Londrina estão mais avançados nesse sentido e construíram espaços adaptados em seus estádios. O maior delesé o Espaço TEA da Neo Química Arena, do Corinthians, com capacidade para 160 pessoas. Inclusive é atribuído ao clube do Parque São Jorge o pioneirismo da formação de uma das primeiras torcidas com essa característica, a Autistas Alvinegros. A Copa do Mundo do Catar apresentou também um espaço voltado às pessoas neurodivergentes.
A frase acima destacada foi a primeira falada por Miguel, então com 4 anos, dita ao seu pai, Ruan Seabra. O engenheiro de software sênior é o fundador da torcida Autistas Botafoguenses, no Rio de Janeiro, e possui, além de Miguel (9 anos), outro filho, Renan (5 anos). Ambos são autistas, sendo que o primeiro tem grau 1 de suporte e o segundo o grau 2 - cuja presença em ambientes públicos requer mais atenção. Ainda de acordo com Ruan, o seu filho mais velho não havia falado frase alguma até o momento em que se disse torcedor do Alvinegro Carioca. A segunda frase dita pelo menino também foi relacionada ao time da General Severiano: "Mãe, eu amo o Gatito", disse sobre o goleiro do clube.
A ideia de fazer uma torcida de autistas veio de Ruan como forma de fazer com que os filhos tivessem uma vivência com o futebol da mesma forma como ele teve. "Eu sempre ia aos estádios com meus tios e primos e queria levar Miguel e Renan, porém me preocupava com o barulho da bateria e como eles reagiriam. Inicialmente fiquei no Nilton Santos, num lugar onde a torcida não costuma ficar, porém, preparado para qualquer eventualidade. Num primeiro momento ele estava com abafador de som que ele próprio acabou retirando. Com a resposta positiva, vimos que daria para levar as crianças".
A experiência bem sucedida acabou dando origem a um perfil no Instagram para incentivar os pais a levarem os filhos ao estádio e mais tarde transformou-se numa rede de apoio e no grupo com o atual formato. Atualmente são 89 pessoas no grupo de WhatsApp e 2.400 seguidores no Instagram. Como ainda não foi construída uma sala sensorial no Nilton Santos, casa do Botafogo, Ruan busca um espaço para reunir os outros membros da torcida.
Outros coletivos também objetivam reunir torcedores que possuem o espectro autista. Além dos apoiadores botafoguenses e corintianos, há os Autistas Alviverdes, do Palmeiras; a Tricolor Autista, do São Paulo; os Autistas Vascaínos; os Autistas do Galo, do Atlético-MG e os Autistas Rubro Negros, do Flamengo. Não foi localizada torcida com essa segmentação no Espírito Santo.
Estima-se que há cerca de 2 milhões de autistas no Brasil. A população total no país é de 200 milhões de habitantes, o que significa que 1% da população estaria no espectro. No último Censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou – pela primeira vez – o autismo no radar das estatísticas, visando mapear quantas pessoas vivem com o transtorno autista e quantas podem ter, mas ainda não receberam o diagnóstico.
Segundo Pollyana Paraguassú, presidente da Amaes e mãe de um rapaz com nível 3 de suporte, atualmente, a cada 36 crianças nascidas do Brasil, 1 é autista. No passado, a estatística era de 1 para cada 168 nascidos. Essa mudança significativa se deve em muito a uma maior precisão hoje no diagnóstico da condição. Segundo Pollyana, houve avanços sobre a inclusão de autistas no futebol, mas ainda há muito a caminhar para uma sociedade mais igualitária e diversa. "A sociedade precisa entender que os nossos sonhos não cabem numa gaveta".
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