DOHA, CATAR - Localizado, como diz seu próprio site, no "coração do West Bay", uma das mais belas regiões de Doha, o W Hotel cobra diárias a partir de US$ 300 (cerca de R$ 1.500). Foi o lugar escolhido como QG da Budweiser, a empresa que pagou US$ 75 milhões (R$ 401,5 milhões pela cotação atual) à Fifa para ser a marca oficial de cerveja da Copa do Mundo de 2022.
Um investimento, em parte, apoiado pela perspectiva de venda dos seus produtos nos oito estádios do Mundial e em seus perímetros. O Catar espera cerca de 1,2 milhão de visitantes para o torneio que começa neste domingo (20), quando a seleção da casa enfrenta o Equador.
Nesta sexta-feira (18), parte desse investimento desceu pelo ralo. Em uma decisão unilateral, apesar das afirmações da Fifa de que tudo tenha ocorrido em comum acordo, o Catar aboliu a venda de álcool nas arenas. Os produtos serão permitidos apenas nas "fan fests" autorizadas e em locais "designados" pelo governo local. Decisão que não só surpreendeu a empresa como também irritou os turistas.
"Bem, isso é estranho", publicou a Budweiser, em sua conta oficial no Twitter, antes mesmo do anúncio feito pela Fifa.
"Não há impacto na venda da Bud Zero, que vai continuar disponível nos estádios da Copa do Mundo do Catar. As autoridades locais e a Fifa vão continuar a assegurar que os estádios e áreas em volta deles ofereçam um ambiente respeitoso e uma experiência agradável a todos os torcedores", diz o comunicado da entidade que controla o futebol.
A Bud Zero é uma cerveja sem álcool.
Minutos após a confirmação da proibição, funcionários da Budweiser montavam a estrutura de um bar construído ao lado do W Hotel para o torneio. O símbolo da cervejaria está em todos os lugares. A Arnheuer-Busch InBev SA/NV, dona da marca que é uma das mais vendidas do planeta, está avaliada em US$ 108 bilhões (R$ 588,4 bilhões).
Em nota, a InBev afirma: "Algumas das ativações planejadas nos estádios não podem ir adiante por causa de circunstâncias que fogem do nosso controle".
A expressão de executivos da companhia na recepção do hotel dizia que o comum acordo divulgado pela Fifa não foi tão "comum" assim.
Segundo um deles disse à reportagem, embora a medida tivesse sido sinalizada nos últimos dias, a empresa não acreditava que ocorreria, principalmente após a concordância em remover para um local menos visível os estandes da cervejaria nos estádios. A exigência havia sido feita pelo Supremo Comitê da Entrega e Legado, responsável pela organização da Copa.
Um dirigente de seleção que já está em Doha afirmou à reportagem considerar ingenuidade da patrocinadora porque o governo do Catar já considerava essa possibilidade há alguns meses, mas deixou para apertar o botão do anúncio a dois dias da primeira partida, quando seria impossível para a Fifa tomar qualquer atitude.
"Não dá para negar, é evidente que diminui a minha empolgação. Ainda mais sabendo só agora", reclamou o espanhol Diego Guillen, 35, questionado sobre a proibição da venda e do consumo de cerveja nos estádios da Copa do Mundo e em seus arredores.
"Eu vim aqui para me divertir e agora não vou conseguir. Eu sempre bebo cerveja ou licor quando estou em um estádio", conta o arquiteto espanhol, que desembarcou no Aeroporto Internacional Hamad, de Doha, na tarde de sexta (18), poucas horas após o comunicado da Fifa sobre a mudança.
Guillen não foi o único que ficou surpreso. Muitos torcedores que chegavam ao país da Copa ainda não sabiam da nova determinação.
Apesar de o anúncio ter sido feito a apenas dois dias da abertura do torneio, o mexicano Alan Loredo, 36, já imaginava que isso poderia ocorrer. "É da cultura local, então temos que respeitar", diz. "Mas vai ser difícil não poder tomar uma bebida refrescante durante os jogos, principalmente com o calor que faz aqui."
Já Wayne Hennessey, 35, goleiro da seleção do País de Gales, torce para que o veto não afete o clima de festa nos jogos.
"Espero que não", disse. "Obviamente, todos nós amamos uma boa atmosfera. Os torcedores do País de Gales lá estão nos apoiando como nosso 12º jogador, espero que isso não os distraia de forma nenhuma."
A discussão sobre a venda de cerveja é assunto que se arrasta desde que o Catar surpreendeu e venceu a eleição para ser sede do Mundial, em dezembro de 2010. O contrato com a Budweiser é considerado pela Fifa peça fundamental do marketing da entidade e da experiência dos torcedores no torneio. Durante o Mundial da Rússia, em 2018, foram vendidas 3,2 milhões de cervejas.
Todas as vezes que foram questionados, representantes do Comitê da Entrega e Legado disseram que o assunto seria resolvido e que o álcool estaria disponível de uma forma que respeitasse a legislação do Catar. Para a Fifa, era uma aceitação implícita de que haveria álcool nos estádios. Mas, ao mesmo tempo, a mensagem dos qataris foi sempre que os visitantes teriam de se adaptar à cultura do país, não o contrário.
De acordo com o Financial Times, que citou informações de membros da organização da Copa, houve uma mudança de atitude pelo receio no governo de que os qataris se sentiriam desconfortáveis em locais em que as pessoas estariam bebendo por mais de três horas antes das partidas.
O consumo de álcool não é permitido pela religião oficial do Catar, o islamismo. Ser visto bêbado na rua é considerado crime.
O Supremo Comitê, órgão que decidiu pelo banimento das cervejas nas arenas, é liderado pelo secretário-geral Hassan Al Thawadi. Considerado pessoa próxima à família real, ele foi nomeado em 2020 pelo emir Tamim bin Hamad Al Thani para o conselho do Qatar Investment Authority, o fundo soberano do país. Sob o comando do emir, o fundo tem patrimônio avaliado em US$ 445 bilhões (R$ 2,4 trilhões).
Bebidas alcoólicas só são permitidas em lugares específicos, como em bares e restaurantes de alguns hotéis. E são caras. Uma Budweiser sai por 50 riais do Catar (R$ 74).
De acordo com o site Expensivity, que calcula o valor das cervejas em diferentes nações, no Qatar está a mais cara do mundo. O governo aplica imposto de 100% na importação do produto. A medida foi apelidada de "taxa do pecado".
Também é muito difícil obter autorização para vendê-la, e a distribuição é estatal. Para receber a licença, é necessário ter cidadania qatari e preencher uma longa série de requisitos que passa por capacidade financeira para manter o comércio em funcionamento e compromisso de não permitir que os clientes saiam às ruas com bebidas nas mãos.
O único ponto de distribuição no país é controlado pela Qatar Distribution Company (QDC), uma companhia estatal que concentra todo o álcool importado no país (que não produz nada).
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