No presente ano, 2022, o Brasil comemora duzentos anos de independência. Mas, o que temos a comemorar?
Um fato recente nos fez lembrar que, há duzentos anos (e há muito mais tempo), somos um país no qual todos são iguais perante a lei, mas “alguns são mais iguais que outros”, parafraseando a célebre frase inserida por George Orwell em sua obra “A Revolução dos Bichos”.
Infelizmente não são poucos os exemplos recentes que confirmam a afirmação presente no título, contudo, o objeto deste artigo se limitará à recente condenação de um ex-Procurador da República a pagar uma indenização de 75 mil reais a um ex-Presidente da República.
Por mais que possamos discordar das escolhas de design para a apresentação em “Powerpoint” feita pelo ex-Procurador, na qual apontava o ex-Presidente como um dos supostos líderes de um grande esquema de corrupção de agentes públicos, poucos acreditariam que o valor arbitrado da penalidade foi proporcional (e muitos questionariam se sequer qualquer valor seria devido ao ex-Presidente).
Ainda na dúvida sobre a proporcionalidade do valor da indenização? Vou te contar a história do Heberson. Em 05 de novembro de 2003, Heberson bebia com os amigos em um bar onde morava. Ao chegar em sua residência, foi preso, na frente de sua esposa e filhos, acusado de ter estuprado uma menina do bairro que o teria reconhecido como um dos praticantes desse ato abominável.
Heberson foi encarcerado mesmo antes de existir qualquer decisão autorizando sua prisão preventiva. Ele nunca deixou de alegar sua inocência. No primeiro dia na cadeia, sem conseguir acreditar no que estava acontecendo com ele, o policial que o conduziu à cela informou a todos os demais detentos a razão de Heberson estar sendo preso.
Já na cela Heberson tentou se matar com uma corda, mas foi salvo por outro detento. Apesar dos esforços de sua família para revogar a prisão preventiva (isso mesmo, ele nem havia sido julgado), tais esforços não tiveram sucesso.
Enquanto estava preso, ainda aguardando seu julgamento, Heberson foi estuprado por mais de 60 detentos (atitude que, infelizmente, não é incomum com acusados de crimes desse tipo). Após a violência sofrida, e preocupado com seus reflexos, pediu para ser testado e no mês seguinte recebeu o resultado: agora Heberson era HIV positivo. Uma “marca” que nunca mais conseguiria retirar.
Talvez você ainda possa estar pensando que ele “merecia” tais atrocidades em razão do ato, também atroz, que praticou. Mas, e se Heberson, na verdade, nunca praticou nenhuma violência contra a menina que sofreu este ato hediondo?
Heberson foi criado desde os 4 anos por seu padrasto, Divaldo, que nunca duvidou de sua inocência. Quando se esgotaram as fontes de recursos para pagar os advogados que atuavam no caso, Divaldo procurou a Defensoria Pública e apresentou o caso de seu enteado.
Analisando o processo, a defensora responsável encontrou uma série de incoerências nas centenas de páginas do processo. De acordo com a defensora, por exemplo, o relato da fisionomia do agressor feito pela vítima não poderia representar, de forma alguma, a figura de Heberson.
A defesa solicitou um laudo junto ao IML para comprovar tal contradição. O laudo confirmou as contradições apontadas. Em maio de 2006 (quase três anos desde a prisão sem julgamento de Heberson), depois de já ter dado pareceres contrários à concessão de liberdade a Heberons, o Ministério Público pediu sua absolvição:
“Percebe-se falta de sintonia entre as declarações prestadas pela vítima (...) diante da inexistência de provas consistentes, claras, irrefutáveis da autoria da instrução penal, o Ministério Público pugna pela absolvição do acusado”.
Em 17 de maio de 2006 foi reconhecida a inocência de Heberson, após lhe terem roubado 925 dias de sua liberdade, sua dignidade sexual e sua saúde. Em 2013, Heberson entrou com uma ação judicial, buscando reparação pelos danos sofridos em reflexo de ter sido encarcerado mesmo sendo inocente, a ação pedia uma indenização no valor de 170 mil reais.
Em 2015 seu pedido foi negado em um primeiro julgamento. Após recorrer à segunda instância, um novo julgamento finalmente lhe concedeu uma indenização, mas de apenas 135 mil reais. Aparentemente os danos sofridos por Heberson não valiam mais que isso.
Agora talvez você já esteja tenha percebido o contraste. Enquanto a um indivíduo foi determinado o pagamento de 75 mil reais por supostos danos causados por meio de uma apresentação de “Powerpoint” malfeita, a outro lhe foi determinado que recebesse 135 mil reais em razão de o Estado lhe ter roubado 925 dias de sua liberdade, sua dignidade sexual e sua saúde
Essa contradição e a história narrada ilustram os diversos casos, contados e não contados ao longo desses mais de 200 anos, que mostram que, no Brasil, todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que outros. Até quando alguns estarão acima da lei? Até quando o Brasil será um país de privilégios?
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