Quando os carros equipados com motores a combustão deixarão de ser produzidos? A Folha fez essa pergunta a representantes de diferentes montadoras em meio ao inverno do carro elétrico. Filas para recarga em meio a nevascas nos EUA e fim dos incentivos fiscais na Alemanha trouxeram dúvidas sobre o futuro.
Na virada da década, as previsões indicavam datas entre 2030 e 2040 nos mercados europeu e norte-americano. Eram planos ambiciosos, desenvolvidos como resposta às legislações ambientais mais rigorosas e ainda sob o impacto do dieselgate, fraude em testes de emissões que abalou o grupo Volkswagen em 2015.
As metas foram mantidas mesmo durante a pandemia de Covid-19, que bagunçou toda a indústria. Hoje, contudo, são poucas as empresas que arriscam citar um ano para o ocaso dos motores a combustão. Por outro lado, novas tecnologias - e bilhões de dólares investidos em linhas de produção mundo afora - indicam que a transição energética não será interrompida.
"Gostaríamos de ter 50% do nosso volume já focado para eletrificação em 2030, mas isso depende de as condições de mercado permitirem, de como isso vai se desenvolver em termos de infraestrutura", diz Carlos Garcia, CEO da Mercedes-Benz Cars & Vans Brasil.
A montadora alemã é uma das que mais acredita no futuro dominado por automóveis 100% elétricos, a ponto de voltar toda sua área de desenvolvimento para esses veículos. O foco principal está em uma nova geração de motores, bem menores e mais eficientes do que os disponíveis hoje.
Desenvolvidos pela Yasa, subsidiária inglesa da Mercedes, esses motores axiais são bem mais leves. Por exemplo: se um conjunto radial usado hoje tem 300 kg, a nova tecnologia vai oferecer a mesma potência pesando 100 kg. O processo de emagrecimento beneficia a autonomia: carros mais leves precisam de menos energia para ir mais longe.
Associada às baterias de estado sólido, que prometem dobrar o alcance e reduzir o tempo de recarga, essa tecnologia poderá trazer a praticidade dos carros a combustão ao universo da eletricidade. Mas até esses veículos chegarem às ruas em grande volume--o que deve ocorrer na próxima década--, muita gasolina será queimada.
"Os nossos veículos a combustão são os que dão rentabilidade para que possamos investir também no futuro, isso é parte do processo", afirma Garcia.
Uma das linhas que ajudam a bancar a transição energética é a nova geração do sedã Mercedes E 300, que chega ao Brasil por R$ 639,9 mil. Tem motor 2.0 turbo (258 cv) conciliado a um "superaltenador", que ajuda a poupar gasolina nas partidas e retomadas. Seu par elétrico é o EQE, que custa R$ 707,9 mil.
Enquanto os alemães pretendem pular direto da combustão para a eletricidade, a Volvo optou pela fase de transição. Seus carros híbridos do tipo plug-in podem ser recarregados na tomada, mas esse sistema tem data de validade.
"No início deste ano já extinguimos a produção de motores diesel, um passo que consideramos importante para a marca e o mercado como um todo", diz a montadora, por meio de nota. "Além disso, a Volvo investiu em uma nova fábrica em Kosice [Eslováquia] que deve produzir exclusivamente veículos elétricos a partir de 2026.
A montadora sueca - que faz parte do grupo chinês Geely - foi a única a cravar uma data para o fim de seus motores a combustão. "A Volvo Cars tem o compromisso de se tornar 100% elétrica até 2030, quando todas as plantas da marca devem se dedicar exclusivamente à produção de veículos elétricos."
As intenções valem para os carros de passeio. As divisões de veículos pesados de Mercedes e Volvo, que são empresas dissociadas das que produzem veículos leves, seguirão com caminhões a diesel por tempo indeterminado.
João Irineu Medeiros, vice-presidente de assuntos regulatórios do grupo Stellantis na América do Sul, diz que as condições são mais complicadas para os caminhões e ônibus. "É necessária uma quantidade de energia muito maior para transportar cargas e pessoas, são cargas pesadas e distâncias longas, o que torna a recarga um processo crítico, por exemplo."
Em relação aos carros de passeio, Medeiros não menciona uma data para o fim da combustão. Ele acredita que não será "isso ou aquilo", mas, sim, "isso e aquilo". A eletrificação plena deve ocorrer, mas não de forma tão rápida como previsões anteriores.
"A indústria automotiva é feita de escala. Vamos pegar o exemplo da Noruega, que vende 210 mil carros por ano e tem uma frota circulante de 3 milhões de veículos. Hoje, 80% dessas vendas são de modelos elétricos, e 20% da frota circulante já é 100% elétrica. Foi um país que se preparou para a eletrificação por ser extremamente dependente do petróleo, mas levou duas décadas para se programar", afirma Medeiros.
O executivo acredita que os modelos híbridos flex serão uma solução em diferentes opções híbridas. Os carros 100% elétricos também farão parte da estratégia das marcas e terão produção nacional, mas haverá convívio de diferentes tecnologias.
"Temos um enorme desafio que é a descarbonização, são 50 gigatoneladas de CO2 que vão se acumulando na atmosfera anualmente. Recolhemos carbono na terra, com o petróleo, e o jogamos de volta à atmosfera. Com o motor a combustão usando etanol, o CO2 lançado é capturado pela plantação da cana-de-açúcar."
Entretanto, a queima do álcool nos tanques também emite poluentes, como o monóxido de carbono. Medeiros afirma que a evolução dos sistemas de controle instalados nos carros atenua esse problema.
"A tecnologia embarcada reduz em mais de 95% as emissões de um carro, e o programa [de controle de emissões] vem evoluindo desde a década de 1980, reduzindo o índice de emissões", diz o executivo. "A próxima fase no Brasil entra em vigor em 2025 e vai reunir o melhor das legislações americana e europeia."
Essa nova legislação, que equivale à oitava fase do Proconve (Programa de Controle de Emissões Veiculares), será dividida em três etapas, sempre considerando a média de emissões das montadoras. É por esse motivo que todas as empresas terão de eletrificar grande parte de seus modelos.
A General Motors, que chegou a garantir que suas linhas de automóveis seriam 100% elétricas a partir de 2035, já revisou suas expectativas. Além de desenvolver carros híbridos flex para o Brasil -que estão inclusos no investimento de R$ 7 bilhões anunciado em janeiro - a empresa planeja retornar com os híbridos plug-in no mercado norte-americano.
É um movimento transitório, mas já não é possível dizer se a meta de eletrificação global será mantida pela dona da marca Chevrolet. A assessoria da montadora afirma que não há novos anúncios sobre esse tema.
Para João Irineu Medeiros, da Stellantis, as regras adotadas por diferentes mercados não podem ser pesadas como as vigentes na União Europeia. "Descarregam tudo na indústria automotiva, não é algo equilibrado nem economicamente nem socialmente."
As preocupações envolvem a sobrevivência da indústria. Os chineses seguem com uma estratégia comercial agressiva em eletrificação, e as montadoras ocidentais ainda não conseguem competir em preço. Se por um lado investem bilhões em novas fábricas, por outro temem perdas que resultarão em fechamentos e demissões.
Daí vem a necessidade de rentabilizar produtos e atender interesses de revendedores. Se ainda há problemas de infraestrutura e autonomia de carros elétricos em grandes mercados, os motores a combustão, híbridos ou não, deverão seguir em linha enquanto as legislações permitirem.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta