“Recebi vários relatórios do comandante-chefe (Oleksander) Syrskyi sobre a frente e nossas ações para levar a guerra ao território do agressor.”
Com estas palavras, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, confirmou no sábado que o exército ucraniano é responsável pelo ataque surpresa na província russa de Kursk, iniciado em 6 de agosto.
Embora o Kremlin afirme que parou a incursão, o fato de os combates continuarem quase uma semana depois parece revelar o contrário.
A Ucrânia afirma controlar 1.000 quilômetros quadrados da Rússia, algo que o presidente russo, Vladimir Putin, chama de “séria provocação”.
Até segunda-feira (12/8), mais de 121 mil pessoas haviam sido retiradas da região atacada e outras 11 mil da vizinha Belgorod.
Da mesma forma, o governador de Kursk, Alexey Smirnov, admitiu que uma área de 12 quilômetros de comprimento e 40 quilómetros de largura e 28 cidades caiu sob o controle de Kiev, informou o serviço russo da BBC.
Isto não é algo como as pequenas incursões ucranianas em território russo que foram vistas ao longo da guerra, mas sim um cenário com uma escala maior.
O que procura a Ucrânia com essa medida arriscada e como é que isso muda o curso da guerra?
A reportagem traz quatro pontos fundamentais para compreender essa nova fase do conflito e suas consequências.
A incursão em território russo foi um choque.
"Estamos no ataque. O objetivo é ampliar as posições que o inimigo deve defender para infligir o maior dano possível e desestabilizar a situação na Rússia porque eles são incapazes de proteger a sua própria fronteira", disse um responsável de segurança ucraniana à agência AFP.
Nos últimos meses, aumentaram as dúvidas sobre a capacidade militar ucraniana não para recuperar o território perdido, mas para conservar o restante. Isso se deve à fracassada contraofensiva que lançou no ano passado e na qual praticamente não obteve vitórias importantes no campo de batalha.
A retirada da cidade de Avdiivka, na província de Donetsk, em fevereiro passado, reforçou o pessimismo.
"Durante os últimos meses, cresceram as vozes argumentando que não fazia sentido apoiar a Ucrânia, porque será sempre a parte fraca contra a Rússia. No entanto, agora há um quadro diferente: é a Rússia que está tentando recuperar o seu território de uma invasão, algo que não era visto desde a Segunda Guerra Mundial", disse o cientista político alemão Andreas Umland à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
“A Ucrânia mudou a narrativa da guerra”, disse o analista do Centro de Estudos da Europa Oriental do Centro de Estocolmo (Suécia), que é especialista em questões relativas à Rússia e à Ucrânia.
O cientista político americano John Hardie fez uma análise semelhante, escrevendo: "Kiev provavelmente procurava revitalizar a moral interna e a confiança ocidental, invertendo a narrativa pessimista dos últimos dez meses. E nesse sentido, já alcançou algum sucesso." .
“A operação eletrizou a mídia ucraniana e ocidental, ao mesmo tempo que provocou alarme e fúria na Rússia”, acrescentou Hardie, diretor do programa russo da Fundação para a Defesa das Democracias, um centro de pesquisas focado na segurança nacional e na política externa.
Outro especialista que acredita que a medida buscou provar que a Ucrânia não está derrotada é o britânico Michael Clarke, do Royal United Services Institute (RUSI, na sigla em inglês).
“Os sucessos no Mar Negro e contra as forças russas na Crimeia não atraíram a atenção global, enquanto o exército está sendo lentamente mas implacavelmente expulso de grande parte do leste da Ucrânia”, escreveu o especialista em diplomacia e defesa no jornal londrino The Guardian.
“Zelensky procurou uma forma de parar ou reverter esta dinâmica. Esta escolha militar estratégica é muito do seu estilo: ousada e arriscada”, acrescentou.
A ofensiva, na qual, segundo alguns especialistas militares, estariam envolvidos entre 6.000 e 10.000 soldados ucranianos e dezenas de veículos blindados, também coloca a Ucrânia em uma outra posição.
"Até uma semana atrás, a Ucrânia estava travando uma guerra puramente defensiva, tentando expulsar as forças russas do seu território, algo que não conseguia há dez anos. No entanto, agora a guerra já não se limita ao seu território, mas abrange também agora o russo", disse Umland.
E isso pode mudar o formato das futuras conversações em que os lados opostos terão de se envolver em algum momento para pôr fim ao conflito.
“A intenção é fortalecer a posição ucraniana para as próximas negociações com o Kremlin”, disse David Betz, professor de História da Guerra no Kings College London, em Londres.
Umland compartilha da mesma visão e explicou: “As negociações anteriores limitaram-se às exigências russas de terras da Ucrânia ou para que esse país aceitasse uma diminuição da sua soberania em troca de paz, mas agora a Ucrânia quer mudar a conversa”.
“Não será mais território por paz, mas território por território: vocês se retiram do meu território e eu me retiro do seu”, disse ele.
O Kremlin também tem a mesma suspeita.
“O inimigo está tentando melhorar as suas posições para uma possível negociação no futuro”, disse o presidente Putin na segunda-feira.
Contudo, o presidente distanciou ainda mais as possibilidades de diálogo com Kiev.
“Que tipo de negociações podemos ter com pessoas que atacam indiscriminadamente civis e infraestruturas civis e tentam criar uma ameaça às instalações de energia nuclear?”, perguntou, ignorando que tem sido acusado pelo lado ucraniano de fazer exatamente a mesma coisa desde fevereiro de 2022, quando mandou invadir o vizinho.
Mas para que essa estratégia funcionasse, as forças ucranianas teriam de ser capazes de reter o território ocupado, algo que os especialistas consultados consideram difícil.
“O ataque deve ser entendido como uma incursão impossível de sustentar”, disse Betz, que comparou esta medida à que Adolf Hitler tentou em 1944 para deter os Aliados.
"Eu diria que esse ataque é semelhante à Batalha do Bulge em 1944. O exército alemão estava nas últimas forças, mas reuniu forças para lançar uma última ofensiva. Estrategicamente não mudou nada para os nazistas e não acho que este ataque mudará tudo para Zelensky", acrescentou.
Outra mudança possível é forçar o Kremlin a retirar parte das tropas que tem atualmente nos territórios que ocupa na Ucrânia, o que permitiria ao exército de Kiev recuperar parte das áreas invadidas ou pelo menos não perder mais.
No entanto, até agora não há indicação de que Moscou tenha mobilizado qualquer uma das unidades que possui em Donbass (leste da Ucrânia).
E, por isso, os especialistas temem que a decisão acabe colocando Kiev numa posição ainda mais precária, do ponto de vista militar.
“Esta manobra foi muito arriscada e com poucos ganhos políticos ou estratégicos, uma vez que drenou recursos ucranianos de outras frentes onde há necessidades extremas e não causou muitas baixas à Rússia”, disse Betz à BBC News Mundo.
E embora tenha admitido que a ofensiva mais uma vez deixou a liderança militar de Moscou numa situação negativa, descreveu como “insignificante” o impacto que pode ter sobre as tropas e especialmente sobre os cidadãos.
O analista Emil Kastehelmi diz que o melhor resultado para a Ucrânia seria a Rússia desviar "recursos significativos das áreas mais críticas [dentro do território ucraniano] para recuperar cada quilômetro quadrado cedido, apesar das perdas na frente ucraniana".
Betz afirmou que “os ataques em território russo apenas reforçam o apoio a Putin”, disse ele.
Mas a incursão ucraniana parece ter afetado a imagem do Kremlin na região de Kursk.
A correspondente da BBC para a Europa de Leste, Sarah Rainsford, disse que mesmo na controlada imprensa local surgiram testemunhos de alguns deslocados, que, muito perturbados, queixaram-se de que as autoridades civis e militares não os informaram da gravidade da situação.
Putin tem cada vez mais dificuldade em esconder a escala das baixas russas e, com dezenas de milhares de pessoas deslocadas, é difícil manter a imagem de que o Kremlin tem tudo sob controle e que não se trata de uma guerra total.
“Já vimos isso em guerras passadas”, lembra o especialista em segurança Mark Galeotti. “Da guerra soviética no Afeganistão à guerra da Rússia na Chechênia: o Kremlin é capaz de manter uma certa narrativa até que a realidade revele tudo.”
As autoridades russas prometeram “uma resposta dura” à Ucrânia e isso vindo de uma potência nuclear pode ser preocupante.
No entanto, para Umland, o fato de Putin ainda não ter ameaçado utilizar o seu arsenal atômico revela que ele não quer agravar a situação.
“Os ucranianos provaram que as linhas vermelhas russas eram virtuais”, disse ele.
“A Ucrânia atacou diretamente o território russo e a resposta de Moscou foi declarar uma operação antiterrorista; ou seja, nem sequer reconhecem que o exército ucraniano os invadiu”, destacou o analista.
"Acredito que Putin não quer agravar a situação, porque se ele ameaçar usar armas nucleares, então deve usá-las, porque caso contrário parecerá fraco. Mas se as usar, forçará o Ocidente e até mesmo aliados como a China a agir de forma diferente”, acrescentou.
Em 2020, a Rússia adotou uma nova doutrina militar, que autoriza as suas autoridades a recorrer ao seu enorme arsenal nuclear e outras armas de destruição em massa “quando a própria existência do Estado estiver ameaçada”.
Um ataque à sua integridade territorial estaria entre as ameaças à existência do Estado Russo.
No entanto, Putin, na sua mais recente intervenção, apenas disse que “a principal tarefa do Ministério da Defesa é expulsar o inimigo do nosso território”.
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