O período mais duro da guerra entre Israel e o Hamas em Gaza ainda pode estar por vir.
Diante de centenas de milhares de militares israelenses, que há dias vestem uniformes de guerra e carregam armamento pesado na fronteira de Israel com Gaza, o ministro da Defesa Yoav Gallant fez nesta quinta-feira (19/10) a sugestão mais clara até agora sobre um possível ataque israelense por terra.
"Vocês veem Gaza agora à distância. Em breve a verão de dentro. O comando virá", disse ele aos soldados. Pouco depois, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu postou um vídeo dele próprio cercado por militares na fronteira e prometendo vitória.
Apesar de contar com um dos exércitos mais ricos e poderosos do mundo, tanto Netanyahu, quanto o ministro Gallant, quando as centenas de milhares de tropas estacionadas na fronteira sabem dos riscos envolvidos na empreitada.
Como matar "todos os membros do Hamas", como prometeu Nethanyahu, em um território que inclui um emaranhado de 500 km de túneis, segundo o grupo palestino, e cerca de 200 reféns nas mãos do inimigo?
E, mesmo que isso fosse possível, como garantir que novos integrantes não assumirão imediatamente o legado do grupo?
Além disso - qual pode ser a resposta de países vizinhos árabes ao crescente número de vítimas, mais de 4.000, em meio à retaliação israelense ao bárbaro ataque de 7 de outubro do Hamas, que resultou em 1.400 israelenses mortos, comunidades destruídas e mais de uma centena pessoas sequestradas, incluindo dezenas de menores de idade e idosos, segundo Israel?
Ainda: como reagirão aliados, como EUA e Europa, enquanto Gaza se transforma em um "buraco do inferno perto do colapso", nas palavras da agência da ONU para refugiados palestinos?
Por fim, o que dirão os próprios israelenses, diante da crescente impopularidade de Netanyahu e a perspectiva de mais mortos em combates?
A promessa israelense de "eliminar o Hamas e destruir suas capacidades militares e políticas" é considerada gigantesca e difícil de cumprir - e isso ajuda a entender o impasse sobre entrar por terra em Gaza, apesar das tropas e posição de ataque.
Entenda, a seguir, os principais riscos.
A faixa de Gaza tem só 41 km de comprimento e 10 km de largura. Mas esse terreno cresce quando se leva em conta lado obscuro do território.
É muito difícil avaliar o tamanho do “Metrô de Gaza”, como Israel chama a rede de túneis em constante construção na região e sob domínio do Hamas.
Após combates em 2021, forças militares israelenses disseram ter destruído mais de 100 km de túneis em ataques aéreos. O Hamas, no entanto, disse que os seus túneis se estendiam por 500 km e que apenas 5% haviam sido atingidos.
O maior metrô do Brasil, em São Paulo, tem pouco mais de 100km, para efeito de comparação.
"O risco da rede de túneis é que ela vai permitir que os defensores do Hamas se movam pelo campo de batalha enquanto estão escondidos e protegidos de ataques", explicou à BBC News Brasil David Betz, professor de Guerra no Mundo Moderno na universidade Kings College de Londres.
"Assim, eles podem ser capazes de atacar as forças israelenses de surpresa pelo flanco ou pela retaguarda e potencialmente desaparecer novamente."
O especialista explica que é difícil localizar as entradas e saídas dos túneis.
"Eles também são bastante difíceis de destruir. Os explosivos têm de ser colocados numa parte considerável do seu comprimento para causar um grande colapso. Um pequeno colapso pode ser contornado pelo Hamas e o túnel voltar a ser utilizado", diz.
Além disso, como lembra a correspondente internacional-chefe da BBC, Lyse Doucet, "não está claro até que ponto os israelenses têm conhecimento sobre que os aguarda na Faixa de Gaza".
"A destreza militar do Hamas – incluindo seu conhecimento surpreendentemente preciso da segurança israelense, que permitiu ao grupo ludibriar as formidáveis defesas do país – impressionou Israel. O Hamas provavelmente vai demonstrar o mesmo nível de sofisticação quando enfrentar a reação israelense, que certamente será feroz", ela diz.
À BBC, Daphné Richemond-Barak, especialista em guerra subterrânea da Universidade Reichman, em Israel, explica que os túneis dentro de Gaza têm centros de comando e controle, eletricidade, e permitem a permanência de longo prazo de integrantes do grupo.
"O Hamas poderia facilmente usar escudos humanos no contexto dos túneis e simplesmente colocar reféns israelenses, e outros dentro deles", diz.
A segurança de mais de uma centena de reféns raptados pelo Hamas no ataque de 7 de outubro contra Israel está no coração das estratégias desenhadas pelas forças de segurança israelenses.
Nesta sexta-feira, o exército israelense divulgou novos detalhes sobre reféns em Gaza.
Duas reféns americanas que haviam sido sequestradas pelo Hamas foram liberadas, após um acordo mediado pelo governo do Catar.
Dos atualmente detidos na Faixa de Gaza, segundo Israel, mais de 20 deles têm menos de 18 anos - a mais jovem é um bebê de 9 meses.
Entre 10 a 20 pessoas têm mais de 60 anos, continua o comunicado, que aponta que "a maioria dos reféns está viva".
Os israelenses também afirmam que cadáveres foram “levados como reféns” para a Faixa de Gaza após os ataques do Hamas.
Mas o paradeiro da maior parte deles é um mistério.
"Enquanto faltarem informações de inteligência, os riscos para os reféns e para os soldados israelenses existirão", diz à BBC News Brasil o analista político-militar Bilal Y. Saab, do Programa de Oriente Médio e Norte de África do think-tank britânico Chatham House.
"As Forças de Defesa de Israel, que têm como alvo o Hamas, podem acabar matando reféns com as suas próprias armas", alerta o professor Betz à reportagem.
Ele cita combates em Mariupol, na Ucrânia, há um ano, quando forças ucranianas lutavam a partir de andares altos de edifícios de apartamentos, enquanto civis de origem russa ficavam encurralados nos andares inferiores.
"Isso tornou os esforços russos para atingir os ucranianos muito difíceis e dolorosos", diz Betz.
"Da mesma forma, se pressionado, o Hamas pode matar ou ameaçar matar reféns para tentar influenciar as decisões dos comandantes israelenses. (...) Não vejo como o destino dos reféns israelenses possa ser outra coisa que não muito sombrio."
A ONU informou nesta sexta-feira que 16 de seus funcionários foram mortos em Gaza desde que a guerra começou.
Citando o Ministério da Saúde de Gaza, as Nações Unidas falam em pelo menos 853 crianças mortas pelos bombardeios de Israel e pedem paralisação imediata dos bombardeios - vindo de ambos os lados.
O total de feridos em Gaza segundo o documento é de 12.493, "incluindo 3.983 crianças e 3.300 mulheres". Mais de um milhão de pessoas foram forçadas a se deslocar de suas casas com guerra.
Protestos contrários à resposta de Israel tem sido registrados nas principais capitais da Europa e do mundo árabe. Protestos pró-Israel também tem sido registrados em várias localidades.
Em visitas recentes a Israel, líderes ocidentais ressaltaram apoio irrestrito ao direito de Israel de se defender contra seus inimigos "desde que a legislação internacional seja respeitada".
Com o crescimento de críticas ao impacto sobre civis da resposta israelense a agressão do Hamas, Israel tem "um problema mais político do que militar", na avaliação do analista Saab.
"Israel pode utilizar seu material bélico mais pesado, mas corre o risco de alienar os aliados ocidentais que pedem a Israel que respeite as regras da guerra", diz.
O correspondente de segurança da BBC, Frank Gardner, concorda.
"À medida que o número de mortos entre os civis palestinos aumenta como resultado dos implacáveis ataques aéreos israelenses, grande parte da comoção global por Israel após as ações sanguinárias do Hamas em 7 de outubro foi substituída por um clamor crescente para que os bombardeios cessem e que os cidadãos comuns de Gaza sejam protegidos", ele afirma.
E, caso as forças terrestres israelenses entrem por terra em Gaza, o número de mortos vai definitivamente aumentar.
"É provável que, mais uma vez, seja a população civil a sofrer o peso do conflito", diz o especialista da BBC.
Na avaliação do jornalista britânico Jonathan Freedland, Israel pode "estar caminhando para uma ‘emboscada’ do Hamas”.
"(Em uma invasão por terra), Israel sofrerá pesadas baixas e irá infligi-las – e ambos os resultados agradarão perfeitamente ao Hamas", disse ele em coluna no jornal The Guardian, apontando que um aumento do número de mortos palestinos "seria uma vantagem na guerra de propaganda", enquanto as mortes de soldados israelenses fortaleceriam o Hamas na palestina.
"Uma guerra longa e sangrenta é o que o Hamas e os seus apoiadores iranianos – desesperados para inviabilizar os recentes movimentos no sentido da ‘normalização’ das relações entre Israel e vários dos seus vizinhos, sobretudo a Arábia Saudita – anseiam", avalia Freedland no artigo.
Netanyahu, cujo governo vinha sendo alvo de grandes protestos nas ruas de Israel, vê sua oposição interna intensificada após as falhas de inteligência que não previram e conseguiram evitar os ataques do Hamas.
Ainda assim, Netanyahu conseguiu um apoio da oposição para formar um novo governo unificado a instalação de um gabinete de guerra, ante um consenso no qual a população parece não ver alternativas para além da "aniquilação do Hamas".
"A questão-chave para Israel será o clima interno, que, na minha opinião, neste momento se baseia numa percepção bastante fria de que não há muita escolha", diz o professor de guerra moderna do Kings College.
"Eles não podem se dar ao luxo de ser fracos, e a maioria das pessoas parece entender isso", diz.
"Difícil acreditar que o Hezbollah vá ficar ali sentado vendo o seu parceiro palestino próximo ser potencialmente desarmado pelas forças de segurança de Israel", diz à BBC News Brasil o analista político-militar Bilal Y. Saab.
Diante da possibilidade de uma invasão contra Gaza por terra, o especialista, que trabalhou como conselheiro sênior do Departamento de Defesa dos EUA, diz que "a probabilidade de outra frente de guerra ser aberta é muito real".
Seu foco mais provável é a fronteira norte de Israel com o Líbano, onde bombardeios mútuos entre militantes do Hezbollah e militares israelenses já resultaram na evacuação de cidades inteiras nos últimos dias.
O Hezbollah é um partido político islâmico xiita e um grupo paramilitar que exerce grande poder na política libanesa. Assim como o Hamas, é apoiado pelo Irã.
A formalização desta nova frente de guerra significaria uma "escalada dramática" nos problemas enfrentados por Israel.
"O Hezbollah tem um arsenal de mísseis muito mais significativo que o do Hamas – muitas vezes maior em número, mas também em alcance, precisão e poder explosivo", explica David Betz.
"Aeródromos, bases, infraestruturas de transporte e comunicações, instalações portuárias e assim por diante de Israel poderiam ser alvo de ataques", continua o professor, lembrando que uma segunda frente no Líbano pode sobrecarregar as forças de defesa de Israel.
"Qualquer operação no terreno em Gaza exigirá muitas tropas, e um número ainda maior será necessário no norte", diz Betz à BBC News Brasil.
O Irã está no centro deste debate. O país vem emitindo duros avisos de que o ataque de Israel a Gaza não pode ficar sem resposta.
O país financia, treina, arma e controla várias milícias no Oriente Médio.
Nas palavras do correspondende de segurança da BBC, Frank Gardner, "de longe, a mais potente delas é o Hezbollah no Líbano".
Israel e Líbano travaram uma dura guerra em 2006. Enquanto o resultado foi inconclusivo, centenas de soldados foram mortos e modernos tanques de guerra de Israel foram destruídos por minas escondidas e emboscadas bem planejadas.
"A abertura de um novo front faria com que o conflito de 2006 pareça um passeio no parque", avalia Saab à BBC News Brasil.
O motivo é que, desde 2006, o Hezbollah se rearmou com ajuda iraniana.
Acredita-se que o grupo tenha hoje perto de 150 mil foguetes e mísseis, muitos dos quais são de longo alcance e guiados com precisão, o que torna seu poderio militar muito maior do que em 2006.
Para Bilal Y. Saab, uma guerra contra o Hezbollah torna o "risco de uma escalada bastante elevado".
Em outras palavras, cresce a possibilidade de mais países se envolverem na guerra - algo que europeus e norte-americanos tentam, a todo custo, evitar.
Após uma rodada por diversos países árabes de seu secretário de Estado, Antony Blinken, o presidente americano Joe Biden fez nesta semana uma viagem-relâmpago à região que previa encontros com chefes de governo do Líbano, Jordânia, Egito e Autoridade Palestina - justamente para baixar os ânimos.
Biden só conseguiu, no entanto, visitar Israel.
Os encontros com líderes árabes, que aconteceriam na Jordânia, foram subitamente cancelados depois da explosão em um hospital de Gaza, cujas causas viraram foco de novas trocas de acusações entre israelenses e palestinos.
Dias depois, o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, também viajou para a região, onde esteve com líderes da Autoridade Palestina, da Arábia Saudita e do Egito, além de Israel.
Duas mensagens principais foram repetidas por Blinken, Biden, Sunak e outros líderes ocidentais: "Apoiamos Israel e não podemos deixar que a guerra saia das fronteiras de Gaza".
Mas o que gera tanta preocupação?
"Se o Irã também se envolver diretamente, em vez de simplesmente através do Hezbollah, seria então muito provável que outras potências sejam atraídas", explica o professor David Betz.
Isso incluiria os próprios EUA - que enviaram na semana passada dois porta-aviões, cerca de 2.000 fuzileiros navais e navios de apoio para o Oriente Médio.
Sinais desta escalada já começam a aparecer, para além do Hamas e do Hezbollah.
Na quinta-feira (19/10), um navio de guerra da Marinha dos EUA interceptou mísseis e drones lançados do Iêmen pelo movimento Houthi, alinhado ao Irã, segundo o Pentágono.
O governo americano disse que os mísseis foram lançados “potencialmente contra alvos em Israel”.
O Pentágono também disse que as tropas dos EUA no Iraque e na Síria foram atacadas várias vezes nos últimos dias.
Washington está em alerta para atividades de grupos apoiados pelo Irã, enquanto Israel continua a atacar alvos do Hamas em Gaza.
"A situação é extremamente confusa e repleta de potencial significativo de escalada", diz Betz à BBC News Brasil.
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