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A avó de 60 anos que se tornou um ícone feminista na China ao escapar do abuso do marido

A avó de 60 anos que se tornou um ícone feminista na China ao escapar do abuso do marido

"Eu era uma mulher tradicional e queria permanecer no meu casamento para o resto da vida, mas percebi que não recebia nada em troca da minha energia e esforço, apenas violência, abuso emocional e psicológico", diz Su Min, que mudou radicalmente sua vida e nos últimos quatro anos acumula aventuras e 300 mil quilômetros rodados pela China.

Publicado em 13 de janeiro de 2025 às 19:44

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Imagem BBC Brasil
Su Min capturou a curiosidade e o espanto de milhões de mulheres chinesas com seus diários em vídeo. (Arquivo Pessoal/Su Min)

Laura Bicker

A avó chinesa Su Min, de 60 anos, não tinha intenção de se tornar um ícone feminista.

Ela estava apenas tentando escapar do marido abusivo quando pegou a estrada em 2020 em seu Volkswagen branco com uma barraca no teto.

"Senti que finalmente poderia recuperar o fôlego", diz ela, relembrando o momento em que se afastou de sua antiga vida.

"Senti que poderia sobreviver e encontrar um estilo de vida de que eu gostasse."

Ao longo dos quatro anos seguintes e quase 300 mil quilômetros depois, os diários em vídeo que ela compartilhou de suas aventuras, ao mesmo tempo em que detalhavam décadas de dor, renderam-lhe milhões de fãs online.

Inadvertidamente, tornou-se a "tia viajante", uma heroína para mulheres que se sentiam presas em suas próprias vidas.

Sua história agora é um filme de sucesso que foi lançado em setembro - Like a Rolling Stone -, e ela chegou à lista da BBC das 100 mulheres inspiradoras e influentes de 2024.

Para ela, a palavra de 2024, um ano de grandes momentos, foi "liberdade".

Imagem BBC Brasil
O mais novo SUV de Su Min é seu terceiro carro nos quatro anos que ela passou na estrada. (Arquivo pessoal/Su Min)

Em entrevista por telefone de Shenyang pouco antes de seguir para o sul no inverno em seu novo SUV com uma caravana, ela disse à BBC que desde que começou a dirigir sentiu-se mais livre, mas foi somente em 2024, quando finalmente pediu o divórcio, que ela experimentou "outro tipo de liberdade".

A jornada foi longa: o divórcio é um processo complicado na China e seu marido se recusou a aceitá-lo até que ela concordasse em compensar-lhe financeiramente.

Eles chegaram ao valor 160 mil yuans (R$ 133 mil), e ela ainda espera a chegada da certidão de divórcio.

Mas está decidida a não olhar para trás: "Estou me despedindo dele".

A estrada para a liberdade

Em sua nova vida na estrada, o compromisso de Su Min é consigo mesma.

Ela geralmente é a única personagem de seus vídeos. Embora dirija sozinha, contudo, nunca parece solitária. Conversa com seus seguidores enquanto filma sua jornada, compartilhando o que tem cozinhado, como tem passado os dias e quais são seus próximos destinos.

O público viaja com ela para lugares que nunca imaginaram que gostariam de conhecer – as montanhas cobertas de neve de Xinjiang, as antigas cidades fluviais de Yunnan, lagos azuis cintilantes, vastas pradarias, desertos sem fim.

Aplaudem sua bravura e invejam a liberdade que ela abraçou. Raramente ouviram um relato tão cru em primeira mão sobre a realidade da vida como uma "tia chinesa".

"Você é tão corajosa! Escolheu se libertar", escreveu uma seguidora, enquanto outra a incentivou a "viver bem o resto da sua vida para si mesma!".

Uma mulher procurou conselhos porque ela também "sonha em dirigir sozinha" e uma seguidora impressionada disse: "Mãe, olhe para ela! Quando eu ficar mais velha, viverei uma vida colorida como a dela se eu não me casar!"

Para algumas, as conclusões são mais pragmáticas, mas inspiradoras: "Depois de assistir a seus vídeos, aprendi que, como mulheres, devemos ter nossa própria casa, cultivar amizades em todos os lugares, trabalhar duro para sermos financeiramente independentes e investir em seguro-desemprego!"

Em meio a tudo isso, Su Min processa seu próprio passado.

Um gato de rua que ela encontra na estrada a lembra de si mesma, ambas tendo "resistido ao vento e à chuva por anos, mas ainda conseguindo amar este mundo que cobre nossos rostos".

Uma visita ao mercado, onde ela sente o cheiro de pimentas, evoca "o cheiro da liberdade", porque durante todo o seu casamento a comida apimentada foi proibida pelo marido, que não gostava.

Imagem BBC Brasil
Su Min em uma roupa tradicional quando visitou sua província natal, Henan, em janeiro de 2024. (Arquivo pessoal/Su Min)

Por anos, Su Min foi filha, esposa e mãe obediente, mesmo quando seu marido a agredia repetidamente.

"Eu era uma mulher tradicional e queria permanecer no meu casamento para o resto da vida", diz ela.

"Mas, eventualmente, percebi que não recebia nada em troca de toda a minha energia e esforço, apenas violência, abuso emocional e psicológico."

Seu marido, Du Zhoucheng, admitiu ter batido nela.

"É meu erro ter batido em você", disse ele em um vídeo que ela compartilhou recentemente no Douyin, a plataforma chinesa do TikTok.

Graduado no ensino médio, ele teve um emprego público no Ministério de Recursos Hídricos por 40 anos antes de se aposentar, de acordo com relatos da mídia local.

Ele disse a um canal em 2022 que batia na esposa porque ela "respondia" para ele, e que era "uma coisa comum": "Como pode em uma família não haver alguns trancos e barrancos?"

Quando o dever chama

Su Min diz que casou-se para evitar o controle do pai e de toda a família".

Ela nasceu e foi criada no Tibete até 1982, quando sua família se mudou para Henan, uma província no vale ao longo do Rio Amarelo.

Ela tinha acabado de terminar o ensino médio quando encontrou trabalho em uma fábrica de fertilizantes, onde a maioria de suas colegas mulheres, incluindo aquelas com menos de 20 anos, já tinham maridos.

Seu casamento foi arranjado por uma casamenteira, o que era comum na época. Ela passou grande parte da vida cozinhando e cuidando de seu pai e três irmãos mais novos. "Eu queria mudar minha vida", diz ela.

O casal se encontrou apenas duas vezes antes do casamento. Ela não estava procurando por amor, mas esperava que o amor crescesse quando se casassem.

O amor não veio. Mas ela teve uma filha, e essa é uma das razões pelas quais se convenceu de que precisava suportar o abuso.

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Su Min capturou a curiosidade e o espanto de milhões de mulheres chinesas com seus diários em vídeo. (Arquivo pessoal/Su Min)

"Temos sempre tanto medo de sermos ridicularizados e estigmatizados se nos divorciarmos, que escolhemos aguentar, mas esse tipo de complacência não é correta", diz ela.

"Mais tarde, descobri que isso pode ter um impacto considerável nas crianças. A criança realmente não quer que você aguente, ela quer que você se erga corajosamente e dê a ela um lar harmonioso."

Ela pensou em deixar o marido depois que a filha se casou, mas logo se tornou avó. Sua filha teve gêmeos — e, mais uma vez, o dever chamou. Ela sentiu que precisava ajudar a cuidar deles, embora já tivesse sido diagnosticada com depressão.

"Senti que, se não fosse embora, ficaria mais doente", diz. Ela prometeu à filha que cuidaria dos dois meninos até que eles fossem para o jardim da infância, e só então iria embora.

A centelha de inspiração para sua fuga veio em 2019, enquanto navegava pelas redes sociais. Ela encontrou um vídeo sobre alguém viajando enquanto morava em uma van. Era isso, ela pensou consigo mesma. Aquela seria sua saída.

Nem a pandemia a impediu. Em setembro de 2020, ela saiu de casa em Zhengzhou e mal olhou para trás enquanto passava por 20 províncias chinesas e mais de 400 cidades.

É uma decisão que certamente repercutiu entre as mulheres na China.

Para seus milhões de seguidores, Su Min oferece conforto e esperança. "Nós, mulheres, não somos apenas esposas ou mães de alguém... Vamos viver para nós mesmas!", escreveu uma seguidora.

Muitas delas são mães que compartilham suas próprias lutas. Elas dizem a ela que também se sentem presas em casamentos sufocantes — algumas dizem que suas histórias as inspiraram a sair de relacionamentos abusivos.

"Você é uma heroína para milhares de mulheres e muitas agora veem a possibilidade de uma vida melhor por sua causa", diz um dos principais comentários em um de seus vídeos mais assistidos.

"Quando eu fizer 60 anos, espero poder ser tão livre quanto você", diz outro comentário.

Uma terceira mulher pergunta: "Posso viajar com você? Eu cubro todas as despesas. Eu só quero fazer uma viagem com você. Eu me sinto tão presa e deprimida na minha vida atual."

'Ame a si mesmo'

"Você pode ter a vida dos seus sonhos?", Su Min ponderou.

"Quero lhe dizer que não importa quantos anos você tenha, contanto que trabalhe duro, você definitivamente encontrará sua resposta. Assim como eu, embora eu tenha 60 anos agora, encontrei o que estava procurando."

Ela admite que não foi fácil e que teve que viver frugalmente com sua aposentadoria. Ela pensou que os vídeos que produzia poderiam ajudar a arrecadar algum dinheiro, mas não tinha ideia de que eles se tornariam virais.

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Histórias de Su Min tocaram milhões de mulheres chinesas. (Getty Images)

Ela fala sobre o que aprendeu ao longo dos anos e seu último desafio — finalizar o divórcio.

"Ainda não recebi minha certidão de divórcio, porque a lei prevê um período de reflexão, e agora estamos nesse período."

Um de seus seguidores escreveu que o dinheiro que ela pagou ao marido "valeu cada centavo", acrescentando: "Agora é sua vez de ver o mundo e viver uma vida vibrante e sem restrições. Parabéns, aqui está um futuro colorido e gratificante!"

Ela diz que é difícil se divorciar porque "muitas de nossas leis na China são para proteger a família. As mulheres geralmente não ousam se divorciar por causa da desarmonia familiar".

No início, ela pensou que o comportamento de Du Zhoucheng poderia melhorar com o tempo e a distância, mas ela disse que ele ainda jogou "panelas e frigideiras" nela quando ela voltou.

Ele só ligou para ela duas vezes nos últimos anos — uma vez porque o cartão de acesso à rodovia dela estava vinculado ao cartão de crédito dele e ele queria que ela lhe devolvesse 81 yuans (R$ 67,47). Ela diz que não usou esse cartão desde então.

Sem se deixar abater pelo atraso em garantir o divórcio, Su Min continua planejando mais viagens e espera um dia viajar para o exterior.

Ela está preocupada em superar as barreiras linguísticas, mas está confiante de que sua história repercutirá no mundo todo — como aconteceu na China.

"Embora as mulheres em cada país sejam diferentes, eu gostaria de dizer que não importa em que ambiente você esteja, você deve ser boa consigo mesma. Aprenda a se amar, porque somente quando você se ama o mundo pode ficar cheio de sol."

Colaborou Fan Wang, de Singapura.

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