Para que a esquerda volte a conquistar espaços na América Latina, deve recuperar "valores e audácia", diz o fundador do Grupo de Puebla, o cineasta e político socialista chileno Marco Enríquez-Ominami, 46, em entrevista à Folha de S.Paulo, em Buenos Aires, na Argentina.
A capital argentina abriga a partir desta sexta-feira (8) a segunda reunião da aliança de lideranças de esquerda latino-americanas, integrada por 30 representantes progressistas de 12 países.
"Nós éramos os audaciosos quando estávamos na oposição e quando começou a década progressista na América Latina [referindo-se aos anos 2000, principalmente]. Mas a direita se preparou bem para voltar ao poder. Usou melhor as comunicações, as redes sociais, a tecnologia", afirma.
E acrescenta: "Enquanto isso, nós, progressistas, viramos conservadores no sentido de defender a obra que tínhamos feito. Eles surgiram como o moderno, e nós parecemos o velho, por isso nos desbancaram".
Ominami faz ainda uma autocrítica, afirmando que quando os líderes progressistas estavam no poder eles não resolveram a questão da reforma dos modelos de desenvolvimento: "Seguimos ancorados na ideia de viver de exportações, e quando elas caíram, o desgaste foi imediato".
A segunda reunião do Grupo de Puebla terá como anfitrião o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, que faz a primeira intervenção pública do evento neste sábado (9), pela manhã.
"Alberto, Néstor Kirchner e Aloizio Mercadante tiveram a primeira ideia dessa agrupação, muitos anos atrás. Eu me somei depois e comecei a convocar as pessoas, criei o grupo de WhatsApp e finalmente marcamos a primeira reunião em Puebla, em julho deste ano. Não somos oposição ao Foro de São Paulo, somos líderes progressistas num espaço de debate."
O grupo de WhatsApp, conta Ominami, esteve agitado na noite de quinta-feira (7), quando foi anunciada a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse solto.
"Esse grupo vê a necessidade de frear o avanço neoliberal na região, e Lula é uma figura importante nesse contexto", disse o chileno.
Quando estouraram os protestos na Bolívia por conta das acusações de fraude por parte do presidente Evo Morales, começou a circular a versão de que o Grupo de Puebla estaria por trás dos distúrbios no Equador, no Chile e na própria Bolívia.
"Isso é um disparate, não teríamos esse poder. A única coisa que há em comum entre os três casos é que há um problema da democracia latino-americana e a questão da prosperidade. A prosperidade de países como o Chile não se traduziu em benefícios para todos os chilenos. De certa forma, também no Equador e na Bolívia, mas são casos diferentes."
Para Ominami, a direita na região estaria utilizando a Justiça para fins políticos. "Ao chegarem ao poder, esses novos líderes neoliberais contraíram um matrimônio promíscuo com a Justiça, praticando essa cruzada contra a corrupção de modo seletivo, algo que ficou muito claro com relação a Lula, no Brasil, mas também ocorreu no Chile e na Argentina."
Sobre a crise que ocorre em seu país, Ominami disse que consegue explicar, mas não justificar o "excesso de violência". Segundo ele, o motivo da raiva da população é o endividamento da classe média e o drama da desigualdade.
Por outro lado, crê que as ações do presidente Sebastián Piñera não caminham no sentido de amenizar a tensão, e afirma que duas decisões podem ser tomadas. A primeira seria aumentar a dívida do Chile ?que é baixa? e pedir crédito no exterior para lançar um pacote que amenize a situação dos mais necessitados.
A segunda é propor um plebiscito para auferir se a população aceita mudar a Constituição. A Carta chilena data da época da ditadura militar (1973-1990) e impôs cortes nas pensões e aposentadorias que hoje são parte da reclamação popular.
Sobre a Venezuela, Ominami diz que o Grupo de Puebla se manifestará em oposição ao Grupo de Lima. "A gestão de Guaidó está acabando, quem será o líder a partir de janeiro? Ele terá de sair, pelas regras do Parlamento. E o que farão os 50 países que o reconheceram? Vão reconhecer o próximo, seja quem for?"
Para o chileno, o Grupo de Lima "não está preocupado com a democracia ou a fome na Venezuela", porque, se assim fosse, "teria tentado fazer entrar a ajuda humanitária de distintas maneiras, diversas vezes, não apenas com um só ato midiático dos presidentes dos países envolvidos".
Ao ser indagado sobre a possibilidade de sair da crise por meio de um diálogo com o ditador Nicolás Maduro, embora várias tentativas já tenham sido levadas a cabo sem sucesso, Ominami diz que defende a autodeterminação dos povos. "É tão difícil dialogar com Maduro quanto com Julio Borges ou Leopoldo López (líderes opositores). Então, com quem se fala? Temos de apoiar os venezuelanos para que saiam disso sozinhos. Isolar não é a saída, de nenhuma maneira."
Também acusou a oposição venezuelana de só aceitar o resultado de eleições quando ganha. "Ganharam em 2015 a Assembleia Nacional, então é legítimo, e todas as outras em que foram derrotados ou impedidos ou boicotaram não valem. Como assim?"
E como exemplo de que a democracia não importa para o Grupo de Lima, cita seu próprio país: "O principal sócio comercial do Chile é a China, e vão me dizer que este governo se preocupa com valores democráticos? É mentira. É cínico dizer isso. O Brasil tampouco está [preocupado], se mostra preocupado porque tem medo do que aconteça em sua fronteira, não é uma preocupação pela fome dos venezuelanos."
Sobre Bolsonaro, Ominami diz que os EUA devem fazer com que mude de ideia em relação às agressões ao novo governo eleito da Argentina. "Se ele tiver alguma capacidade de leitura do que está acontecendo, verá que os EUA já estão mudando de aliados na América Latina", afirma.
"Já veem que Iván Duque [Colômbia], que Martín Vizcarra [Peru], que Sebastián Piñera [Chile] e que Mauricio Macri [Argentina] não deram certo e acenaram positivamente para Fernández. Bolsonaro tem de ver isso, ou alguém de seu governo tem de ver e contar para ele, e deixar de hostilizar a Argentina. A realidade vai lhe mostrar isso. Espero que saiba interpretar."
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta