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A jovem que virou advogada e conseguiu absolvição da própria mãe acusada por assassinato de namorado na Bahia

A jovem que virou advogada e conseguiu absolvição da própria mãe acusada por assassinato de namorado na Bahia

Doze anos após ser acusada de ter matado namorado, Rosália foi inocentada de por tribunal do júri, em julgamento em que teve a própria filha como advogada de defesa

Publicado em 10 de outubro de 2024 às 13:45

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Imagem BBC Brasil
Camila disse que julgamento enfrentado pela mãe a incentivou a fazer faculdade de direito. (Arquivo pessoal)

Felipe Souza

Um estampido rompe o silêncio por volta das 20h de uma terça-feira na cidade de Valença, na Bahia. O barulho é acompanhado de uma sequência de gritos de socorro desesperados.

Os vizinhos da rua sem saída aparecem imediatamente para atender aos chamados de ajuda feitos por Rosália Maria Negrão Pita. O então namorado dela, José Antônio Silva Braga, conhecido como Tony Veículos, de 35 anos, acabara de morrer com um disparo no coração, feito com um revólver calibre 38.

A arma usada no crime foi encontrada pela polícia no banco do carona, no carro onde ele foi encontrado morto.

Era o início de uma saga que durou 12 anos até que ela conseguisse ser absolvida há duas semanas, no dia 25 de setembro deste ano. O Tribunal do Júri decidiu por unanimidade (4 votos a 0) que o então namorado tirou a própria vida e que ela não é uma assassina.

O detalhe mais surpreendente é de que, entre os advogados de defesa de Rosália, estava a própria filha dela, Camila Pita, de 26 anos. A jovem fez faculdade por conta do caso que mexeu com a família dela. Ela estudou por mais de uma década e se formou em direito para fazer parte da equipe de defesa da mãe.

A BBC News ouviu Camila, o Ministério Público na Bahia e especialistas para entender o caso.

A noite que durou 12 anos

A cidade de Valença é passagem de muitos turistas por ser o principal acesso à Ilha de Tinharé, onde fica localizado o povoado de Morro de São Paulo — um paraíso de praias com águas quentes e cristalinas ao sul de Salvador.

Em entrevista à BBC News Brasil, a advogada Camila Pita conta que tinha 14 anos quando o namorado da mãe, na versão da defesa, se matou dentro do carro e, a partir de então, iniciou uma saga de 12 anos até que ela fosse declarada inocente.

Camila conta que não teve um pai “muito presente” e foi criada pela mãe e pela avó materna.

Considerada pequena, a cidade que possui 85 mil habitantes, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se mobilizou em torno do caso. Em publicações sobre o assunto encontradas pela reportagem no Instagram, parte dos moradores do município acredita que Tony Veículos foi assassinado pela namorada, enquanto outra defende que ocorreu um suicídio.

A advogada Camila Pita conta que não se lembra exatamente, mas tinha 7 ou 8 anos, quando a mãe dela conheceu Tony.

“Eles tinham um relacionamento um pouco conturbado, com muitas idas e vindas, mas sem casar. Eles namoraram durante uns 7 anos até que aconteceu o fato”, conta Camila.

A advogada conta que cerca de 15 dias antes da morte de Tony, o casal havia terminado o relacionamento. Ele tentava reatar, nas palavras de Camila, e a mãe dela negava.

“Em uma discussão, o Tony ameaçou que se mataria caso ela não voltasse com ele. Ele saiu da casa dele, disse que daria um jeito na situação e entrou no carro dizendo que faria uma besteira”, afirma Camila.

A advogada conta que Tony já tinha feito isso antes. Nas ocasiões, ele teria apontado o revólver contra o peito e contra a cabeça, repetidamente, por diversas vezes, enquanto ameaçava apertar o gatilho.

Na noite em que ele morreu, Rosália teria insistido diversas vezes para que ele se acalmasse e desistisse da ideia. Após Tony entrar no veículo, ela teria inclusive dito que entraria no carro com ele. Antes, teria pedido para pegar a bolsa que tinha ficado dentro da casa dele.

Em depoimento, ela afirmou que, assim que ela se virou para buscar o item pessoal, ouviu um disparo. Quando se vira novamente, Tony está ensanguentado e sem vida.

Ela diz não saber se foi acidental ou intencional, pois estava de costas no momento do disparo. A reação imediata foi gritar e pedir ajuda para os vizinhos.

As testemunhas chegaram ao local logo após o tiro, segundo disseram em depoimento.

A família de Tony não acredita na versão de Rosália e suspeita que ela seria a autora do disparo fatal.

Em um comunicado distribuído à imprensa local, a família disse antes do julgamento:

“Pedimos à sociedade e à imprensa que se unam a nós neste momento crucial, e as autoridades que ouçam nosso apelo, para que, juntos, possamos garantir que os responsáveis paguem pelo que fizeram e que Tony, um homem de tantos sonhos e amores, receba o respeito que merece", diz um trecho da nota

A reportagem não conseguiu contato com a família de Tony até a publicação desta reportagem.

Tribunal do Júri

Imagem BBC Brasil
Camila chora abraçada à mãe após Tribunal do Júri inocentar Rosália. (Arquivo pessoal)

Para a advogada Camila, a perícia e as investigações já forneciam indicações suficientes para inocentar a mãe dela e evitar um desgaste em toda a família.

A perícia colheu todas as digitais no local do crime. Nenhuma das que foram coletadas encontradas na arma eram de Rosália.

A defesa alega que não havia sinais de que a então namorada de Tony teria entrado no carro com ele porque apenas a porta do lado do motorista estava aberta. Ela também não teria feito um disparo pelo lado de fora, pois não havia marcas de balas no veículo.

A perícia apontou que o disparo foi feito dentro do veículo. A defesa alega que uma mulher relativamente baixa, de 1,50 metro, não teria condições de balear um homem de 1,80 e matá-lo com apenas um tiro.

A morte de Tony virou notícia nos jornais e portais de notícias locais e comoveu a população de Valença. O rapaz era muito conhecido por sua atuação no ramo de revenda de veículos e por ser pré-candidato a vereador.

A fase do inquérito policial, com investigação, depoimentos e laudos periciais, durou cerca de um ano.

Para Camila, o caso deveria ter sido encerrado logo após o fim do inquérito policial, com a absolvição da mãe dela e sem a necessidade de um Júri.

“Infelizmente, a Justiça às vezes é cega, principalmente quando se trata de Tribunal do Júri. Ou seja, eles entendem que tudo tem que existir no Júri”, diz.

Procurado pela reportagem, o Ministério Público da Bahia informou por meio de nota que denunciou, em julho de 2013, Rosália por homicídio com base no inquérito policial.

Segundo a promotoria, as investigações apresentaram “indícios de autoria e de materialidade dos fatos criminosos, com testemunhas e laudo pericial que afastaram a tese de suicídio alegada pela ré”.

O Ministério Público afirmou ainda que essa acusação foi avaliada pela Justiça, que recebeu a denúncia.

“(A Justiça) considerou que a peça trazia os elementos necessários para início da ação penal e instrução criminal. A Justiça também considerou que havia indícios suficientes de autoria e materialidade para determinar o julgamento popular de Rosália Maria, razão pela qual pronunciou a ré pelo homicídio”, diz a nota.

Em 2020, o Tribunal de Justiça negou o recurso de Rosália Maria e determinou que o julgamento dela fosse a júri popular.

“O Ministério Público da Bahia reafirma que cumpriu com zelo o seu dever constitucional e em todas as fases do processo atuou com respeito à lei e de acordo com as provas dos autos”, informou a promotoria.

Faculdade para defender a mãe

Imagem BBC Brasil
Até mesmo o TCC de Camila na faculdade foi sobre o caso da mãe dela. (Arquivo pessoal)

Quando Tony morreu, Camila tinha 14 anos. Ela estava no ensino médio e começava a escolher uma profissão.

Ela conta que tudo na família dela começou a girar em torno desse processo e influenciou inclusive na escolha da profissão.

“Comecei a estudar muito o processo para entender. Eu queria saber o que estava acontecendo, o que era o processo penal, e comecei a me interessar pelo direito”, conta Camila à reportagem.

Ela conta que prestou vestibular e começou a estudar no campus da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) em Valença.

“Quando eu comecei a faculdade, eu me apaixonei mais ainda pelo tribunal do júri depois que eu assisti ao primeiro. Falei: ‘vou ter que aprender a fazer isso aí’, diz.

Pela lei brasileira, o julgamento de crimes como homicídios dolosos (quando há intenção de matar) é feito por um órgão composto por um juiz de carreira e jurados escolhidos por sorteio entre os cidadãos locais. Esse órgão é chamado de tribunal do júri.

A participação como advogada de defesa em um tribunal do júri da própria mãe foi a oitava em três anos de profissão. A intenção de Camila foi atuar no maior número de casos possível de tribunais do júri para ganhar experiência para defender a própria mãe.

“Logo quando eu entrei (na faculdade), eu não sabia se iria dar tempo (de defender a minha mãe). Mas passou dois anos e eu já falava com os advogados dela e eles me falaram que eu me formaria a tempo. E deu certo”, conta com tom de orgulho.

A sentença

Doze anos após a morte de Tony, sete pessoas ouviam no fórum Gonçalo Porto de Sousa a defesa, Rosália e a promotora de acusação Rita de Cássia Pires Bezerra Cavalcanti para decidir o futuro da ré.

Um dos pontos mais questionados pela família nesses 12 anos e pela acusação durante o julgamento, segundo Camila, são os exames que identificariam presença de pólvora nas roupas e na pele, tanto da vítima quanto de Rosália. O resultado foi inconclusivo para ambos.

“A única base que eles utilizavam é que foi feito um exame de pólvora nas mãos do Tony e não deu pólvora nas mãos dele. Mas é um exame que o próprio laudo vem com mais de dez itens que podem acarretar em um falso negativo. Esse é um exame que a polícia chegou a suspender em alguns Estados por um período”, diz.

Após todas as considerações, à 0h50 do dia 25 de setembro de 2024, Rosália foi considerada inocente por quatro votos a zero. Os últimos três jurados nem sequer precisaram ser ouvidos porque o júri já tinha formado maioria.

“Foram muitas emoções porque é claro que eu tinha medo de dar errado. Foi o júri com a maior proporção que já teve aqui na cidade. O fórum estava lotado, com muita gente em pé. Pelo menos 50 pessoas estavam com camisetas escritas Rosália Inocente. Foi muito noticiado, era o assunto da cidade, então bate aquele nervosismo porque eu senti medo de ela sair dali presa”, diz Camila.

Ela ainda contou que aos poucos se acalmou, pois tinha estudado muito o processo e estava confiante na inocência da mãe. Depois do resultado, a emoção.

“Na hora, eu chorei muito. Eu não conseguia parar de chorar. Minha mãe já estava muito em choque porque ela passou o julgamento todo muito apreensiva. Ela teve que reviver o que para ela foi um trauma muito grande”, diz.

“A sensação é de alívio para a gente. Foi uma virada de página e, por eu ter conseguido fazer tão bem, eu vou conseguir usar isso como uma mola propulsora na minha vida”.

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