ATENÇÃO: a reportagem a seguir tem descrições de violência que alguns leitores podem considerar perturbadores
No Reino Unido, uma pesquisa comprovou que dezenas de crianças foram forçadas a manter contato com pais acusados de abuso.
Em alguns dos casos, divulgados em primeira mão pela BBC, se tratava de pais condenados até mesmo por pedofilia.
E, em todos os casos, os pais usaram no tribunal um conceito polêmico conhecido como "alienação parental".
Esse mesmo conceito é citado nos casos da morte de diversas mulheres, sempre após a vara de família permitir que os pais acusados de abuso solicitassem contato com os filhos.
O estudo, realizado na Inglaterra pela Universidade de Manchester e noticiado pela BBC, mostrou que todos os pais acusados de abuso apelaram para a alienação parental, afirmando que as mães estavam colocando a criança contra eles sem uma boa razão.
A Dra. Elizabeth Dalgarno, que liderou a pesquisa, diz que o conceito é “uma ferramenta útil para abusadores" e o fato dele ser aceito legalmente é um "escândalo nacional".
A advogada de direito de família Lucy Reed KC diz que o termo é usado "cada vez mais frequentemente", mas que seu significado pode variar. "Muitos pais usam esse termo para definir praticamente qualquer coisa que vá contra suas demandas de contato com os filhos."
No estudo da Universidade de Manchester, todas as 45 mães envolvidas relataram ter tido sérios problemas de saúde como abortos espontâneos, ataques cardíacos e pensamentos suicidas, possivelmente causados pelo estresse decorrente dos processos judiciais.
Há meses, a BBC também investiga a forma em que as varas de família lidam com denúncias de violência doméstica em litígios familiares, e para isso tem acompanhado diversas histórias de mulheres traumatizadas.
Nomes e demais sinais de identificação foram alterados devido às leis de divulgação de processos judiciais, visando a proteger as crianças.
A delegada especialista em violência doméstica Nicole Jacobs diz que os casos "angustiantes" descobertos pela BBC mostram a necessidade de uma "reforma urgente e abrangente" nas varas de família. Assessorados por especialistas não regulamentados, os abusadores usam a "suposta alienação parental" para "distrair a atenção de seu comportamento abusivo", diz ela.
Desde que a BBC informou ao Ministério da Justiça (MoJ) sobre esta investigação, soubemos que o governo está estudando tomar mais medidas relacionadas à "alienação". O judiciário já emitiu novas diretrizes provisórias, orientando sobre alegada alienação parental em casos de abuso doméstico, mas nem todos as consideram suficientes.
Os amigos de Grace, uma destas mães, contaram à BBC que, no início do relacionamento com o novo namorado, ela estava loucamente apaixonada. Tudo mudou quando descobriu que ele já havia sido preso pelo estupro de uma criança. As fontes contaram que Grace também sofreu abusos por parte dele.
Depois da separação, o ex-parceiro se recusou a devolver a criança à mãe, e ainda questionou a saúde mental dela. Segundo ele, corria o risco de ela "alienar" a criança.
O tribunal de família estava ciente da condenação, mas acreditou que o risco para a criança era administrável.
Uma pessoa próxima a Grace contou que durante todo o processo ela se sentiu desacreditada, até que "sua alma simplesmente desapareceu por completo".
A BBC pôde ver uma das últimas mensagens enviadas por Grace para seu grupo de amigos, onde escreveu: "Não consigo comer nem dormir, está tudo errado, odeio a vara de família. Morto, morto, morto."
A saúde de Grace foi piorando e ela faleceu após a audiência final, na qual foi determinado que a criança viveria com o ex-parceiro abusador.
Outra amiga disse à BBC: "Quando alguém desiste de viver, emocional e mentalmente, imagino que o corpo faça o mesmo. Foi quase como condená-la à morte. E a culpa é 100% da vara de família.”
O caso de outra mãe, que tirou a própria vida após dois anos na vara de família, ilustra os danos que um processo arrastado pode causar à saúde mental de uma pessoa vulnerável.
No caso da mulher que aqui chamamos de Sarah, o resumo público do julgamento relata detalhadamente abusos gravíssimos. Antes dela morrer, uma audiência de apuração já havia determinado que seu parceiro era culpado de estupro e agressão em estado de embriaguez. Ele havia socado Sarah no peito, estapeado e jogado contra o corrimão.
O homem também havia instalado na casa um circuito fechado de televisão, para monitorar Sarah e seus dois filhos, e não os deixava nem usar o banheiro de porta fechada. Ele ainda ameaçou Sarah com tornar públicos vídeos dela no quarto do casal.
Também foi comprovado que, após o término da relação, ele chegou a colocar rastreadores no carro dela.
No processo, o homem disse que queria contato com seus filhos e mencionou a alienação parental. Eventualmente, esses pedidos foram negados, mas então Sarah já havia se suicidado.
A juíza disse "lamentar enormemente" que o processo tenha demorado tanto e que tenha sido "evidentemente tão difícil para a mãe".
Após a morte de mais uma mãe, que estava esperando em frente à vara de família, um médico questionado pelo inquérito opinou que a parada cardíaca poderia ter relação com o estresse emocional causado pelo processo, na chamada "síndrome do coração partido".
De acordo com a apuração da BBC, nos documentos do legista a mãe alega ter sofrido violência doméstica. Entendemos que a alienação parental não havia sido citada neste caso, e que a mulher havia perdido a guarda dos filhos.
Em outro caso, o de uma mãe com histórico de passagem por abrigo para vítimas de violência doméstica, os amigos disseram à BBC que, após ter suas fichas médicas expostas no processo, ela ficou tão traumatizada que não quis mais ir ao médico, mesmo estando gravemente doente.
Uma amiga conta que a mulher sentiu como se no tribunal "o poder estivesse com seu agressor", já que ele a tachou de doente mental e a acusou de virar o filho contra ele, ou seja, de alienação parental.
Após o juiz determinar que o filho moraria com seu ex-parceiro, a mãe teve medo de ser levada de volta à vara de família e perder o pouco contato que tinha com a criança, conta outra fonte.
A mãe contraiu uma doença tratável, mas procurou atendimento médico tarde demais e faleceu por sepse.
Na primeira audiência de Sheila na vara de família, um juiz mencionou a alienação parental como advertência para ela.
Pessoas próximas à mulher contam que ela sofreu durante anos com o comportamento coercitivo e controlador de um parceiro abusivo que, mesmo depois da separação, seguiu bombardeando ela com e-mails, ligações e mensagens a qualquer hora.
Quando o ex-parceiro de Sheila solicitou ter mais contato com o filho, seus entes queridos a orientaram a confiar na vara de família, mas agora dizem estar amargamente arrependidos de ter dado esse conselho.
Antes mesmo de pedir o laudo pericial, o juiz opinou que estava acontecendo alienação parental, coisa que o tribunal levou extremamente a sério.
De acordo com pessoas que a conheciam bem, Sheila ficou traumatizada com a audiência, que foi a favor do pai.
"Ela passou a ter medo de ser presa mesmo por qualquer bobagem", disseram em entrevista à BBC. "Nunca se recuperou, a sua vida passou a ser controlada pelas varas de família e por seu agressor."
Cerca de um ano depois, Sheila tirou a própria vida.
A associação Samaritans, de prevenção ao suicídio, diz que as razões para alguém tirar a própria vida podem ser muito complexas e raramente se pode atribuir o gesto a uma única causa identificável. Mas, na Inglaterra, o judiciário encomendou um relatório examinando a possibilidade de "risco potencialmente elevado" de suicídio em pessoas envolvidas em casos de família.
Pesquisadores especializados em vara de família mostram preocupação com o aumento das alegações de alienação parental em casos como estes, em que, em vez de intervir o serviço social, um dos pais processa o outro.
A Universidade de Manchester descobriu que o denominador comum entre as 45 mulheres e os 75 filhos analisados no estudo são as acusações de alienação parental.
A pesquisa examinou o impacto dos casos de família sobre a saúde de mulheres vítimas de abuso.
A Dra. Dalgarno, que conduziu a pesquisa, diz que estas mães não foram amparadas juridicamente. "As evidências de abuso foram minimizadas ou completamente ignoradas, mesmo se tratando de evidências confiáveis, como condenações penais", diz ela.
A Dra. Dalgarno diz que, de acordo com pesquisas autodeclaradas, estima-se que em cerca de 70% dos 55.000 casos de família anuais há alegações de abuso, mas não há dados suficientes para afirmar que os casos com alienação parental prevalecem.
De acordo com Dalgarno, deveriam ser implementadas medidas de emergência para evitar que as alegações de alienação parental sejam instrumentalizadas no tribunal. "Isso tem um impacto catastrófico sobre a saúde de crianças e adultos vítimas de abuso, que chegam a cogitar ou tentar o suicídio."
Jess Phillips, do gabinete paralelo de combate à violência doméstica no Reino Unido, diz que milhares de mulheres sobreviventes de experiências semelhantes já a procuraram. "É a questão pela qual mais vêm até mim", diz.
Para ela, a questão é comparável a escândalos como o da pedofilia na Igreja Católica.
"Não se trata de um só erro judiciário. Nem de uma única vara desonesta em uma região específica do país. Estamos lidando com uma tática usada pelos abusadores em todas partes."
O sigilo e o poder exercidos pelos tribunais são "ideais para os perpetradores de violência doméstica", acrescenta.
Quando há alegação de violência doméstica, sexual ou qualquer forma de abuso de crianças, o contato deve ser conquistado, não dado automaticamente, diz Phillips.
Ela também diz que é preciso proibir o uso de especialistas não regulamentados e coletar mais dados sobre os resultados dos processos de família.
O termo alienação parental foi cunhado pelo controverso psiquiatra norte-americano Richard Gardner dentro da "síndrome da alienação parental". Gardner defende que, em divórcios difíceis, as mães fazem lavagem cerebral nos filhos para que acreditem ter sido abusados pelos pais, e recomenda cortar completamente o contato com elas para que as crianças sejam "reprogramadas".
A falta de evidência científica fez com que o conceito desta síndrome fosse desconsiderado, mas há quem diga que, rebatizado simplesmente como "alienação parental" e apoiado por alguns psicólogos, ele segue sendo usado em casos de família.
Lucy Reed KC, que promove a transparência sobre o funcionamento das varas de família, acha que os processos não devem ser desviados por "jargões psicológicos complicados", incluindo o termo alienação parental.
Ela diz que é preciso supervisionar melhor a forma em que os tribunais lidam com isso. "A criança pode estar rejeitando o contato porque sofre violência doméstica", diz.
O presidente da vara de família na Inglaterra e no País de Gales, Sir Andrew McFarlane, alerta que o rótulo de alienação parental "não ajuda em nada", e recentemente foram emitidas novas orientações provisórias para lidar com "alegações de comportamento alienante".
Elas são um guia passo a passo para varas de família que lidam com alegações de alienação parental, especialmente em casos de violência doméstica. O guia indica focar em evidências e fatos antes de passar para os julgamentos.
Muitos acham que não é suficiente. No início deste ano, o relator especial das Nações Unidas sobre violência contra mulheres e meninas pediu que o uso da alienação parental fosse proibido globalmente.
A comissária para casos de violência doméstica na Inglaterra e País de Gales, Nicole Jacobs, diz que muitas vezes os tribunais julgam ao mesmo tempo as alegações de violência doméstica e alienação parental, o que, segundo ela, é uma "abordagem pouco segura" que pode colocar mulheres e crianças em risco.
O serviço de assessoria e apoio à vara da criança e da família da Inglaterra (Cafcass), que aconselha os tribunais sobre o melhor interesse das crianças, falava em "alienação parental" em 2021, mas agora prefere o termo "comportamentos alienantes". Porém, o órgão disse à BBC que o procedimento sempre avalia fatores como violência doméstica na hora de justificar por que a criança se recusa a ver um dos pais.
Em um comunicado, o Ministério da Justiça disse que os casos citados são "trágicos" e expressou seu profundo pesar. Acrescentou também que, para proteger as vítimas de violência doméstica, houve melhorias nas varas de família, que passaram a impedir o contra-interrogatório de agressores, expandir a assistência jurídica e permitir depoimentos com telas de proteção ou por videoconferência.
*Reportagem adicional de Adam Walker
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta