O ano era 1845 no Estado americano do Alabama.
Anarcha, uma mulher escravizada de 17 anos, teve um bebê, mas surgiu um problema. "Uma curiosidade cirúrgica muito infeliz", escreveria posteriormente o médico que a atendeu.
Ele se chamava James Marion Sims (1813-1883) e nunca havia visto aquilo antes. Mas decidiu fazer algo a respeito.
Depois que Westcott, o senhor de escravos, autorizou Sims a tratar de Anarcha, o médico iniciou seus procedimentos experimentais.
O que seria uma só operação acabou se transformando em 30 cirurgias.
Esta é a história de mulheres negras que tiveram seus corpos explorados. Seus sacrifícios ofereceram instrumentos médicos que ajudam a salvar vidas até hoje.
O evento ocorreu em um momento da história dos Estados Unidos em que o transporte transatlântico de seres humanos escravizados já era ilegal, mas a escravidão ainda não havia sido abolida.
A Proclamação de Emancipação, que proibiu legalmente todas as formas de escravidão formal nos EUA, surgiria apenas duas décadas depois, em 1862.
Anarcha morava em uma plantação agrícola em Montgomery, no Alabama. Ela ficou em trabalho de parto por 72 horas.
Seu parto foi obstruído – ele não avançava, mesmo com as contrações uterinas adequadas. Isso ocorreu porque o tamanho do feto era desproporcional ao canal da mãe.
Muitas mulheres não teriam sobrevivido naquele momento, e os registros não indicam se o bebê sobreviveu.
O parto deixou a mãe com uma fístula vesicovaginal. Fístula é o termo médico empregado para designar um orifício que não deveria existir – uma abertura anormal entre duas partes do corpo.
No caso da fístula vesicovaginal, a abertura se encontra entre a bexiga e a vagina.
Um artigo publicado pela Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos descreve as fístulas vesicovaginais como uma das complicações mais angustiantes dos procedimentos ginecológicos e obstétricos.
Elas resultam em incontinência urinária contínua e incessante.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que de 50 mil a 100 mil mulheres desenvolvem fístulas vesicovaginais todos os anos, em todo o mundo.
No caso de Anarcha, ela ficou incontinente, com ardor e dores constantes. O médico James Marion Sims, que assistiu o parto, foi chamado para tratar dela.
Depois de vê-la pela primeira vez, ele escreveu na sua autobiografia: "Com exceção da morte, este foi o pior acidente que poderia ter acontecido com a pobre jovem."
Naquele momento, a escravidão e a saúde reprodutiva estavam entrelaçadas.
Quem explica é a historiadora e ativista dos direitos reprodutivos Deirdre Cooper Owens, autora do livro Medical Bondage: Race, Gender and the Origins of American Gynecology ("Servidão médica: raça, gênero e as origens da ginecologia americana", em tradução livre).
"A Constituição dos Estados Unidos proibiu o comércio transatlântico de escravos em 1807. Por isso, foi preciso recorrer a uma nova forma de aumentar a população de pessoas escravizadas", explica a historiadora.
"Portanto, era o melhor interesse e análise de custo-benefício reparar ou restaurar a saúde reprodutiva das mulheres escravizadas porque, literalmente, os ventres das mulheres negras eram o eixo da escravidão."
Por isso, "não é que eles tivessem uma visão bondosa de 'oh, meu Deus, vamos cuidar destas pobres mulheres grávidas ou puérperas'", esclarece Cooper Owens.
"Trata-se de manter melhor a propriedade, pois o status legal das pessoas escravizadas era de pertences ou bens móveis."
"Foi por esta razão que Sims teve acesso tão fácil aos seus corpos, pois era parte da cultura e da prática dos hospitais ou dos médicos ir aos donos das pessoas escravizadas e dizer: 'Veja, se você me alugar o seu escravo, posso tentar reparar ou restaurar sua saúde'", conta a escritora.
Sims tentou costurar a fístula de Anarcha, mas não funcionou. Ele voltou para casa e começou a pesquisar a fundo a literatura sobre o tema.
Mais tarde, ele voltou e comunicou o prognóstico ao escravagista. Anarcha sobreviveria, mas nunca seria capaz de cumprir com os deveres exigidos de uma serviçal.
Pouco tempo depois, um médico procurou Sims com outra adolescente escravizada chamada Betsy, que sofria de incontinência urinária.
Ele disse que a examinou relutantemente e declarou que sua condição era incurável.
Depois, veio uma terceira mulher cativa – Lucy, de 18 anos, que tinha uma fístula na bexiga, segundo sua autobiografia.
Cansado da situação, ele declarou: "O caso é absolutamente incurável. Não quero vê-la, nem o caso."
Até então, Sims não estava interessado nos procedimentos ginecológicos – a maioria deles, um mistério na época. Ele chegou a escrever que "se havia algo que odiava, era investigar os órgãos da pélvis feminina".
O médico também escreveu que, até conhecer Anarcha, "nunca pretendi tratar de nenhuma das doenças das mulheres e, se alguma mulher viesse me consultar por qualquer transtorno funcional do sistema uterino, eu respondia imediatamente: 'isso está fora da minha linha de trabalho'."
Sua postura só mudou quando uma mulher branca, a senhora Merrill, veio consultá-lo.
Naquela época, era incomum que os homens realizassem exames vaginais, mas ela permitiu que ele o fizesse. E, ao examiná-la, Sims descobriu que, colocando a mulher em uma determinada posição física, o médico tinha acesso para poder ver melhor seus órgãos e poder tratar da paciente.
Sims acreditou que, se colocasse suas pacientes com fístula vesicovaginal naquela posição, ele poderia ver o suficiente para fazer algo em relação à sua condição, que havia escapado de tantos médicos e cirurgiões por tanto tempo.
Aquele foi um momento importante.
O médico estava, segundo suas próprias palavras, "inspirado com a ideia". Tanto que se esqueceu dos outros pacientes que precisava atender, chamou dois dos seus alunos de medicina e os levou para o hospital.
Eles foram ver Betsy, que estava para receber alta. Sims então testou sua teoria com ela – e funcionou.
"Vi tudo como nenhum homem havia visto antes", escreveu o médico na sua autobiografia.
Entusiasmado, ele pensou que tudo seria muito simples. Tudo o que ele precisava fazer era fechar a abertura cirurgicamente.
"Eu tinha certeza de que estava em vias de realizar uma das maiores descobertas da época. Quanto mais pensava, mais me convencia daquilo", contou ele.
Mas, primeiro, ele precisou inventar diversos instrumentos necessários para a operação. Depois, ele escreveu para os senhores de Anarcha, Lucy e Betsy, dizendo que gostaria de ficar com elas e tentar curá-las.
Sims também procurou outros casos para experimentar em todo o país. Ele recebeu mais seis ou sete mulheres escravizadas em condições parecidas.
Naquele ponto, ele já havia estabelecido seu próprio hospital e decidiu acrescentar outro andar, o que resultou em 16 leitos – 4 para servidores e 12 para pacientes.
Anos mais tarde, em 1855, ele viria a criar o que é normalmente conhecido como o primeiro hospital feminino de Nova York, nos Estados Unidos.
Mas o hospital do Alabama foi o primeiro criado para tratar – ou melhor, fazer experiências – com mulheres negras.
E as próprias mulheres ajudavam a gerenciar o hospital.
Como assim?
Parece estranho, mas é verdade. As pacientes acabaram trabalhando no hospital enquanto o médico fazia experiências com seus corpos. Como isso aconteceu?
"Lembrem-se, eu estava muito entusiasmado e esperava curá-las em seis meses. Nunca sonhei com o fracasso e pude observar a precisão e a beleza com que a operação poderia ser realizada", relatou Sims.
Anarcha passou aos cuidados do médico. Ou seja, ele foi autorizado legalmente a fazer qualquer coisa com ela, sem importar a vontade nem o pensamento da paciente.
E ele praticava cirurgias com ela, Lucy, Betsy e com outras nove mulheres escravizadas.
Inicialmente, outros médicos o ajudaram, ansiosos para presenciar o novo procedimento. Mas, como escreve o próprio Sims, "dois ou três anos de fracassos constantes e esforços infrutíferos fizeram com que meus amigos se cansassem".
Quando os outros médicos perderam o interesse e seus assistentes se demitiram, ele ordenou às pacientes que o ajudassem.
Sims, então, treinou as mulheres a operar umas às outras.
"Às vezes, as pessoas se surpreendem", conta Cooper Owens. "'Mas eram suas pacientes!' E eu respondo: 'Sim, mas eram escravas. O que você acha que faziam as pessoas escravizadas? Elas trabalhavam, do nascimento até a morte.'"
As cirurgias também fizeram com que elas precisassem amarrar umas às outras, já que eram realizadas sem anestesia.
"A anestesia já existia, mas Sims era um homem do seu tempo", explica a historiadora. "E a crença médica científica reinante era que as pessoas negras não sentiam dor e, se sentissem, era muito leve."
"Hoje sabemos que isso é ficção, mas era o que se pensava."
Um dia, o procedimento de Sims para fechar as fístulas vesicovaginais finalmente funcionou – e melhorou a vida de muitas mulheres.
É por este motivo, em parte, que seus pares começaram a se referir a ele como o "pai da ginecologia moderna".
"Ele foi um homem notável no seu campo", afirma Cooper Owens. "Foi um escritor médico prolífico, ocupou cargos muito altos na Associação Médica Americana e na Academia de Medicina de Nova York."
"Por isso, depois da sua morte, seus colegas disseram: 'Sim! Este homem dedicou sua vida ao serviço destas valentes empregadas negras. Foi o pai da ginecologia.'"
Mas, recentemente, esta história passou a ser observada de outro ponto de vista.
Em 2018, um grupo chamado Black Youth Project 100 organizou protestos artísticos e promoveu uma campanha pela retirada de uma estátua de Sims em Nova York. E conseguiu.
Existem versões das ferramentas desenvolvidas por Sims que continuam sendo usadas e conservam o nome do médico.
Mas a atenção foi sendo deslocada para Anarcha, Betsy, Lucy e para as outras mulheres escravizadas desconhecidas que passaram pelos seus experimentos.
Elas agora são consideradas "as mães da ginecologia".
Em sua homenagem, a artista e ativista norte-americana Michelle Browder ergueu uma escultura com Anarcha, Lucy e Betsy em Montgomery, no Alabama, perto do local onde Sims conduziu os experimentos no século 19.
Ouça o episódio da série The Human Subject (em inglês) da BBC Rádio 4, que deu origem a esta reportagem, no site BBC Sounds.
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