Pode, à primeira vista, parecer um lugar calmo. Mas o olho de um furacão, essencialmente, é uma enorme armadilha.
Dentro daquele cenário de relativa tranquilidade, há ventos ferozes. Nuvens de tempestade dão lugar ao céu azul ensolarado e a forte chuva é substituída por um calor típico de primavera.
Mas a calmaria é interrompida assim que a extremidade da parede do olho passa sobre a nossa cabeça.
As aves que ficam presas no seu interior normalmente têm pouca chance de escapar. Elas são forçadas a voar com o movimento da tempestade até ficarem exaustas.
É impossível entrar ou sair do olho sem atravessar um anel de profundas nuvens de convecção que se elevam até 15 mil metros de altura.
Esta é a parte mais forte e perigosa do furacão: a parede do olho. No solo, as rajadas de vento da parede do olho podem atingir mais de 330 km/h, uma velocidade capaz de arrancar pessoas, carros e casas do chão.
"Pessoalmente, foi algo que eu nunca gostaria de experimentar de novo. Eu não desejaria para o meu pior inimigo", conta William Hamilton sobre o furacão Dorian, que varreu as Bahamas em 2019. Hoje, Hamilton é consultor de mudanças climáticas do Ministério da Saúde do país.
Ainda assim, existem motivos que levam algumas pessoas a seguir em direção ao núcleo do turbilhão mortal de um furacão, em vez de fugir para longe dele. No ar, estão os cientistas; e, em terra, caçadores de tempestades e serviços de resgate.
O centro de uma tempestade gera uma atração assustadora, mas que pode salvar vidas.
Os recordes de temperatura da superfície em alto mar no Oceano Atlântico, gerados pelo aumento das emissões de gases do efeito estufa, causou um ano de grande atividade dos furacões.
A estação atual já viu o furacão Beryl quebrar recordes e gerar destruição em partes do Caribe. E o furacão Francine – o sexto a receber nome em 2024 – atingiu a categoria 2 e chegou à terra no Estado americano da Louisiana em 10 de setembro, deixando centenas de pessoas sem eletricidade.
À medida que as mudanças climáticas tornam os furacões mais perigosos, a necessidade de compreender o funcionamento interno das tempestades é maior do que nunca.
Mas quem são as pessoas que perseguem esses fenômenos meteorológicos que se movimentam em alta velocidade? E como suas experiências podem ser úteis?
O Estado americano de Wisconsin fica longe do litoral. Mas Heather Holbach descobriu ainda jovem, por experiência própria, como um tornado pode ser "apavorante".
Ansiosa para aprender mais sobre aquela ameaça, ela começou a assistir ao The Weather Channel na televisão – e acabou se encantando com os furacões.
"Achei realmente fascinante a existência deles", afirma ela, referindo-se às equipes de voo em aeronaves conhecidas como "caçadores de furacões". Eles coletam dados científicos dentro daquelas enormes tempestades.
"Meu pai era piloto e eu sou grande fã de montanhas-russas", conta Holbach. "Achei que voar em um deles realmente parecia emocionante e, então, defini que este seria meu objetivo."
Depois de se formar na universidade, Holbach entrou para a Divisão de Pesquisa de Furacões do Laboratório Meteorológico e Oceanográfico do Atlântico, mantido pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa, na sigla em inglês).
De 2013 para cá, ela voou através de mais de 13 furacões diferentes, incluindo diversos eventos das categorias 4 e 5 – as maiores que as tempestades podem atingir.
Essa atividade pode trazer intensas emoções.
Quando atravessou o furacão Irma, em 2017, Holbach havia se mudado pouco tempo antes para Miami, na Flórida (Estados Unidos). Ela não sabia ao certo se haveria alguma coisa em pé quando voltasse para sua nova cidade.
"Era um estranho conjunto de emoções", relembra. "Existe sempre a fascinação pela tempestade, mas também, naquela vez, muito nervosismo com o meu apartamento, meus amigos e vizinhos."
O trabalho de um caçador de furacões também não está livre de riscos.
O meteorologista Jason Dunion, do Laboratório Meteorológico e Oceanográfico do Atlântico da Noaa, já voou em "40 a 50 tempestades diferentes" ao longo da carreira. Ele relembra claramente sua experiência com o furacão Dorian, em 2019.
Dorian foi o furacão mais potente que já atingiu as Bahamas. Ele se intensificou rapidamente durante o voo de Dunion.
Foi "alucinante", segundo ele. "Acho que nunca havia vivenciado antes o poder da mãe natureza naquele nível."
Dunion alerta que é necessário ter precauções, como voar a não menos de 2,4 mil a 3 mil metros de altura. Correntes súbitas de ar descendente de mais de 80 km/h podem deixar os tripulantes "flutuando, se não usarem cintos de segurança".
Apesar dos riscos, os caçadores de furacões continuam retornando ao olho da tempestade. Afinal, os dados que eles enviam para o Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos (NHC, na sigla em inglês) são valiosos para os meteorologistas de todo o mundo.
Diversas tecnologias ajudam neste processo. Transmissores de radar, por exemplo, enviam pulsos eletromagnéticos que refletem a precipitação no interior da tempestade e ajudam a documentar a quantidade de chuva (gotas de água maiores e pedras de granizo difundem mais radiação do que pingos de chuva comuns).
Radiômetros de micro-ondas de frequência escalonada (SFMR, na sigla em inglês), fixados à asa da aeronave, medem a radiação de micro-ondas emitida pela espuma do mar e pela correnteza da superfície do oceano. A medição é empregada para determinar a velocidade do vento.
Paralelamente, drones lançados pelos aviões podem voar acima das ondas, monitorando a quantidade de energia transferida para cima pelo mar, a fim de alimentar a tempestade. Eles podem até ser mantidos "ociosos" no olho do furacão, permitindo o monitoramento contínuo das mudanças de pressão enquanto a aeronave prossegue em sua missão.
Essas e outras ferramentas permitem acompanhar a pressão, velocidade do vento, temperatura e umidade do furacão em nível de precisão mais alto do que apenas com a observação via satélite, explica Dunion.
"Os meteorologistas sempre usam satélites, mas eles também ficam ansiosos, esperando a chegada dos dados dos aviões", segundo ele.
Os dados informam ainda as "pesquisas sobre o que gera um furacão", segundo Dunion – ou o processo oposto, como a forma em que a poeira do deserto do Saara pode impedir seu crescimento.
Com tudo isso, o olho e a parede do olho permanecem fundamentais. Com diversas passagens através do olho, em missões conhecidas como "ajustes", as tripulações conseguem reunir uma visão geral da tempestade.
As observações do núcleo interno dos furacões também são fundamentais para prever rápidas alterações da potência das tempestades.
Prever essas alterações da intensidade envolve a observação das propriedades das nuvens no núcleo interno, incluindo a movimentação do ar dentro da tempestade, explica Ting-Yu Cha, que cursa pós-doutorado em Ciências Atmosféricas no Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas da Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
Enquanto isso, uma das características mais estranhas exibidas pelos furacões talvez seja a formação de uma segunda parede do olho, com o surgimento de um novo anel externo de tempestades em torno do primeiro.
Os dados de satélite e de aeronaves são as únicas formas em que os meteorologistas podem detectar a ocorrência desse fenômeno em mar aberto, segundo o estudante de graduação Alvin Cheung, do Departamento de Ciências Oceânicas e Atmosféricas da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
Essa formação pode interromper temporariamente o fortalecimento da tempestade. Mas, às vezes, sua intensidade é renovada em seguida, com o aumento do campo de vento.
O monitoramento da tempestade em tempo real pode ajudar a salvar vidas, explica Ting-Yu. Ele permite que as pessoas tomem decisões sobre a evacuação "bem antes que a tempestade chegue".
Quando a tempestade chega à terra, as pessoas no solo têm a missão de prosseguir com a caçada através do olho do furacão.
O professor de Ciências Atmosféricas Michael Biggerstaff, da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, lançou os sistemas de radar de Ensinamento e Pesquisa Atmosférica Móvel Compartilhada (SMART, na sigla em inglês) para 14 furacões, desde 2001.
Neste processo, é preciso chegar ao local dois ou três dias antes da tempestade e instalar os radares antes da chegada do furacão ao solo. O sistema é então operado através da tempestade, de dentro do caminhão de radar.
"É como ficar em uma montanha-russa de madeira por mais de 20 horas", explica Biggerstaff.
Mas a espera pode fornecer informações fundamentais, como as mudanças causadas pelos mesovórtices (onde são tipicamente encontradas as rajadas de vento mais fortes) ao longo da extremidade interna da parede do olho sobre a resistência da circulação de vórtices depois da chegada a terra, possivelmente produzindo danos extremos.
Os caçadores de tempestades também defendem que podem fornecer dados valiosos de dentro dos furacões que atingem a terra.
"Normalmente, lançamos sondas para medir as condições na parte mais forte da tempestade", afirma Edgar Oneal. Ele pratica a atividade há 11 anos e, recentemente, entrou para o grupo de caça a tempestades Team Dominator, conduzido pelo meteorologista Reed Timmer.
Atualmente, Oneal se dedica a participar da pesquisa científica de Timmer sobre tornados, para tentar capturar sua estrutura 3D do lado interno.
Ele também faz transmissões ao vivo, incluindo de furacões. Oneal destaca que as transmissões pelas redes sociais podem fornecer atualizações valiosas para os moradores locais que não foram evacuados.
Existe também um pouco de curiosidade que o atrai às paredes do olho de furacões, segundo Oneal. Mas "embora possa existir um elemento de empolgação, é fundamental se manter sob controle: esses furacões devastam vidas."
Em vez de simples "viciados em adrenalina que procuram fama na internet", como consideram algumas pessoas, Oneal defende que os caçadores de tempestades fazem contribuições importantes para a ciência e para a imprensa.
Ele conta que já ajudou a resgatar mais de 20 famílias desde que começou a caçar tempestades. Ele próprio nunca precisou de resgate e chega a trazer seu próprio combustível, para evitar consumir os recursos locais.
Mas os riscos são grandes – desde se ferir com os altos ventos e destroços até afogamentos, ou ser atingido pela inundação.
Ryan Cartee também enfatiza a importância de se manter em segurança durante seu trabalho de risco.
Entre outras funções, Cartee é caçador de tempestades de um meio de comunicação local, fotojornalista e socorrista de emergência. Ele caça furacões há 20 anos.
Durante o furacão Katrina, em 2005, Cartee presenciou uma maré de tempestade de quase nove metros, que atingiu residências e instalações comerciais.
Uma forma de reduzir os riscos ao documentar os furacões, segundo ele, é viajar com antecedência para os locais previstos de chegada dos furacões à terra, para encontrar uma posição relativamente segura.
"Para se posicionar para interceptar o olho, você precisa ter algum tipo de cobertura, se for um sistema maior", explica ele, "devido aos ventos mais fortes que atiram destroços em volta da maré de tempestade."
Mas a melhor proteção contra furacões é seguir as orientações de evacuação, aconselha Cartee.
Para as pessoas que não podem ou não querem deixar suas casas, a passagem do olho do furacão pode ser uma oportunidade fundamental para buscar abrigo.
Quando o furacão Dorian atingiu as Bahamas, em 2019, William Hamilton estava destacado como médico no centro de assistência hospitalar da cidade de Marsh Harbour.
Ele e sua esposa moravam no dormitório dos funcionários, em frente à clínica. Eles rapidamente ficaram presos dentro de casa, enquanto a tempestade ficava mais forte.
"Perdemos totalmente a comunicação", relembra ele. "A eletricidade caiu, as torres de telefonia celular foram derrubadas."
"Por isso, não tínhamos ideia de onde estava a tempestade naquele momento. Só sabíamos que ela era tão intensa que as telhas caíram do telhado e a água começou a se infiltrar dentro do apartamento."
"Você conseguia ver carros de ponta-cabeça no lado de fora e todos os postes de luz caídos. Entendemos que era a passagem da parede de olho frontal", ele conta.
Subitamente, os ventos se acalmaram o suficiente para que sua vizinha saísse do apartamento e avisasse que o olho do furacão estava passando. Por isso, eles deveriam sair para a segurança da clínica próxima.
Se eles não tivessem saído de casa durante aquela trégua, Hamilton acredita que teria sido ainda mais difícil se recuperar do impacto traumático causado pela tempestade.
"Poderíamos ter sobrevivido, mas a ansiedade e a angústia mental de ficarmos [presos na casa] por tanto tempo teriam sido ainda mais perturbadoras", ele conta.
Ao chegarem à clínica, Hamilton e sua esposa conseguiram atender outras pessoas que também usaram o olho do furacão como oportunidade para conseguir assistência médica e segurança.
Ele começou a trabalhar 20 minutos depois de chegar à clínica, no dia 1º de setembro, e prosseguiu com poucos intervalos até a chegada do primeiro helicóptero de socorro da Guarda Costeira americana, no dia 3.
A experiência de Hamilton com o Dorian levou à criação do PTSD. E ele pediu assistência médica após o furacão.
"Digo aos pacientes que, para mim, é fácil tratar de uma perna quebrada, mas é difícil ouvir as pessoas dizerem 'minha mãe morreu e eu a deixei dentro do armário'", ele conta. "Foi angustiante ouvir tantas histórias de perdas durante aquelas 48 horas."
Hamilton observou experiências traumáticas similares entre seus pacientes. Desde então, ele defende que as estratégias de socorro em furacões devem incluir profissionais de saúde mental.
A passagem direta do olho do furacão pode, portanto, oferecer uma rara e breve oportunidade de proteger vidas, mas não protege contra a devastação causada pelo furacão.
Para o professor de Saúde Pública James Shultz, da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, "se colocarmos ênfase demais no olho e na parede do olho, correremos o risco de ignorar o impacto maior do restante da tempestade", bem como as oportunidades de reduzir o desastre, fortificando os hospitais e revisando os códigos de construção.
Paralelamente, a experiência das pessoas que sobrevivem à passagem do centro de um furacão não é algo que elas irão menosprezar outra vez, segundo Hamilton.
E, com as mudanças climáticas fazendo com que os furacões fiquem mais fortes e as pessoas socioeconomicamente mais desfavorecidas sendo frequentemente as mais vulneráveis, a necessidade de melhor preparação e conhecimento entre a população em geral é maior do que nunca.
"Precisamos conscientizar as pessoas de que todos nós temos um papel a cumprir, com as tempestades ficando mais fortes", destaca Hamilton. Isso envolve tudo – desde os esforços para reduzir as emissões globais até a introdução de melhores programas de natação nas regiões mais baixas, como ele sugere.
"Todos deveriam se inscrever em um desses programas, pelo menos para conseguir sobreviver", conclui Hamilton.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
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